quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Em volta da lagoa




*Por Pe. Julio Ferreira, C.Ss.R.

Penso que nós, Igreja da libertação, organizações e movimentos populares, temos uma enorme responsabilidade diante da atual situação conjuntural em que nos encontramos. O principal motivo que me leva a essa conclusão se liga diretamente à confiança e referência que representamos para o povo, com suas necessidades e expectativas. 

Diante disso, acredito ser da mais fundamental importância, e não pode ficar para mais tarde, a revisão de métodos, estratégias e até o realinhamento com nossos objetivos. Se não fizermos isso, estaremos fadados a mesmice e ao descrédito. Está mais do que na hora de avançarmos para águas mais profundas, de comermos algo mais substancial, de enfrentar o grande capital com outra arma que não seja a pedra e o estilingue. Precisamos nos inquietar e não ficarmos satisfeitos com o que estamos fazendo e como estamos fazendo.

Como os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz, eles já sabem que nós iremos chegar de madrugada e que iremos acampar; já sabem quais são as nossas reivindicações e as promessas que irão fazer; eles já sabem que daremos a volta em torno da lagoa, faremos uma longa caminhada, celebraremos a missa e voltaremos para casa sem ousadia. Eles já sabem, investem e apostam em nossa dispersão, divisão... enquanto se articulam e ganham coesão.


Sei que não é fácil se desfazer daquilo que há anos se tem feito, mesmo não trazendo os resultados esperados. Ter conquistado o pouco já nos dá a sensação de sermos vitoriosos. Mas não é para isso que existimos, não é essa a nossa razão de ser: ficar dando volta em torno de nós mesmos e aceitar que esse sistema perverso continue nos dando as sobras e nos mandando de volta pra casa não faz parte das nossas origens. É preciso voltarmos às nossas raízes.

Ao longo dos anos e da nossa história temos acumulado experiências e conteúdos. Creio que, se sentarmos organizados e colocarmos todos os nossos saberes em comum, vai nascer algo jamais visto, mas há muito esperado. Nos demos essa oportunidade. Todos sairemos ganhando. E não serão migalhas.

*Missionário Redentorista, Militante da Organização Popular de Aracati - OPA - Jornalista e Assessor das CEBs do Regional NE 1.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Dos dentes à cabeça



Fortaleza, 05 de agosto de 2015.
Por Thales Emmanuel*
Na savana africana, um grupo de zebras, inconformadas com a rotineira vida de obediência às leis naturais, decide se rebelar. Sua ideia pioneira: não servir mais de alimento ao leão.
A proposta, aprovada em assembleia, foi de lhe endereçar um abaixo-assinado. O cabeçalho curto buscava eliminar os sinais de titubeação surgidos quando se discutia o que escrever na mensagem. “Vossa Majestade Rei Leão, nós abaixo-assinadas... nossa carne é dura e por isso rogamos por vossa clemência e compreensão para não nos ter mais em vossa dieta.” Resultado: a zebra portadora do bilhete foi jantada.
Na segunda tentativa, o texto continuava curto, mas alguns tufos de pastos vistosos acompanhavam um convite ao vegetarianismo. “O leão é carnívoro. Não adianta tentar convencê-lo que comer carne é algo ruim, tá na sua essência.” Mesmo com o alerta da zebra mais velha, uma equipe de três foi formada para entregar o documento. Por sorte e saciamento estomacal, uma escapou viva.
Os fracassos consecutivos levaram as zebras a um projeto diferente. “Nos distanciaremos. Longe de seu reinado, não mais poderá nos atacar.” E assim o fizeram. Num lugar esquecido, às margens do nada, começaram a reorganizar suas vidas. No entanto, quando tudo parecia beirar a perfeição, eis que se sucede um novo banquete, desta vez promovido por um leão desconhecido. As que conseguem escapar, decidem retornar à antiga morada. No caminho, um novo plano é elaborado.
A definição é que todas, ao mesmo tempo, fossem falar diretamente com o Rei, exigindo-lhe o fim das matanças. Com os cascos apontados em sua direção, o leão se assustou com o que viu. A pressão foi tanta, que o fez mudar de cor. Selada a paz, passou a trafegar livremente entre as zebras. Pareciam amigos e muitos na savana se admiravam com aquele impensável comportamento; outros desconfiavam. As zebras baixaram a guarda de uma vez. Às noites, já dormiam encostadas à juba do bicho. E foi justamente numa dessas madrugadas que a fome apertou e não teve jeito. O leão havia mudado de cor, não de cardápio.
As sobreviventes, que, com o período de paz, esqueceram quão afiados eram aqueles caninos, estavam desorientadas com o baque repentino. Mesmo assim, decidiram pela mais ousada de todas as ações até então pensadas: arrancar-lhe os dentes. O grupo estava reduzido. Era um tudo ou nada.
A estratégia foi bem executada e, no dia seguinte, o Rei amanhecera “nu”. Envergonhado e furioso, correu para cima das zebras, que fugiam na velocidade que dava. Com tapas nos membros traseiros, o felino as derrubava, e, com as garras, sangrava-as. Uma a uma, todas se foram. E o leão, com o sentimento de vingança satisfeito, sumiu imponente no horizonte, sem que nenhuma mordida fosse dada.
Se um conhecido escritor, que nunca foi zebra nem leão, mas entendia de luta, ainda fosse vivo, certamente diria: “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, arrancar-lhe os dentes não serve de nada”.

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

sábado, 1 de agosto de 2015

A caminho do caos



Aracati, 29 de julho de 2015.
Por JosenilsonDoddy*

Há décadas, cientistas, filósofos, teólogos e pessoas de vivência prática apontam reflexões sobre a situação da nossa casa, nossa mãe, que “geme como que em dores de parto” (Rm 8,22).
A humanidade é chamada a se conscientizar sobre o estilo de vida adotado e imposto que dizima a vida. Uma cultura de descarte, onde as matérias-primas e recursos naturais são esgotados e se convertem rapidamente em lixo, afetando nitidamente a terra e os seres humanos, que nada mais são que parte desta grande obra.
Até o século XX, muitos acreditavam e defendiam que a função do homem era conhecer a natureza para dominá-la. Partindo desse princípio, a degradação exacerbada foi adquirindo forças através do sistema do capital, que prioriza, antes de tudo, o lucro, sendo a vida tratada como algo banal e sem valor. Neste sistema, o ser humano, dotado de inteligência e força física, ataca a terra e aos que se colocam em sua defesa, como diz Ademar Bogo.
A propriedade privada pode ter surgido da carência dos meios de sobrevivência. No entanto, no decorrer da história, tornou-se a razão de ser da sociedade, constituída na forma concreta da relação da força do trabalho com o capital. O ter ganhou força total, o egoísmo se proliferou e a ganância humana passou a destruir os recursos naturais em prol da concentração do poder, exaurindo uma boa parte da vida do planeta e levando o mundo ao caos da destruição, colocando-o em crises irremediáveis, se considerado o princípio ativo advindo da mesma lógica de destruição.
Criou-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana para resolver uma dificuldade, muitas vezes agrava ainda mais a situação. Por exemplo: muitos pássaros e insetos, que desaparecem por causa dos agrotóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica, que possivelmente trará novos efeitos nocivos (Papa Francisco,2015).
 O sistema do lucro, imposto para a sociedade, causa os problemas com sua degradação e, através de seus meios tecnológicos, maquia uma solução que logo acarretará em mais problemas, somente para que se continue a produzir exacerbadamente novas tecnologias, sugando e destruindo a cada dia a vida do planeta, para que se aumentem os lucros que beneficiam uma minoria da população. Mas as consequências do caos atingem principalmente aqueles que sobrevivem com as migalhas e tão pouco usufruem do tal “progresso”.
As estimativas apontam que a água, um bem comum de todos, está em uma grande escassez e que provavelmente, em algumas décadas, não será mais de todos e sim daqueles que poderão pagar pelo seu preço para consumi-la. Apenas 2,5% da água do planeta é potável. Menos de 10 países, dentre eles o Brasil, detém 60% desta totalidade. Destaca-se que 70% de toda a água utilizada hoje é consumida na agricultura, nas lavouras irrigadas. O restante, 20%, é destinado à indústria, e apenas 10% para o consumo humano, sendo que 1/5 da humanidade não dispõem de água potável (ONU, 2006). 
Aponta-se para um futuro, não tão distante, que guerras serão travadas para se obter o controle do que ainda resta de água potável e quem ganhará com isso novamente serão aqueles que detêm o poder de guerra. Diariamente é repassado para a população em geral que devemos reduzir o consumo d’água, que este bem está prestes a acabar, sendo que, quem de fato consume a grande maioria de água são as empresas, indústrias e grandes negócios do capital, os diretamente responsáveis por toda esta catástrofe.
De fato, todos devem tomar medidas imediatas de preservação e cuidado com o planeta; porém, os verdadeiros culpados continuam a destruir com seu consumismo exagerado e tão pouco se importam com os que realmente sofrem, pois estão amparados por suas tecnologias e quase não sofrem com os impactos e danos causados pelo sistema. A pergunta que nos preocupa é: se o sistema atual persistir, permitirá que se use qualquer bem da natureza sem pagar?
A necessidade de que se obtenha outro sistema é urgente e nitidamente visível. O sistema capitalista já chegou a seu limite, levando o planeta ao caos. O poder de mudança está nas mãos dos que sofrem diariamente com os danos, pois as estruturas do sistema só serão modificadas através da organização popular. E quando o povo de fato assumir o poder, saberá como viver em abundância, sem exaurir a vida do planeta. Quando a igualdade social existir,a humanidade compreenderá que somos parte da mãe terra e que dela devemos cuidar. Mas para que isso aconteça é necessário estruturar um novo sistema e que nele a vida esteja em primeiro lugar.

*JosenilsonDoddy é militante da Organização Popular (OPA) e da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP).