sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Cristianismo e Comunismo


Por Thales Emmanuel*

No início de novembro deste ano, após o Terceiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares, no Vaticano, o papa Francisco tornou a assemelhar cristãos e comunistas:
“São os comunistas os que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não os demagogos, mas o povo, os pobres, os que têm fé em Deus ou não, mas são eles a quem temos que ajudar a obter a igualdade e a liberdade.”
Logo depois do primeiro encontro, realizado em Roma, 2014, Bergoglio já havia dito algo parecido. No segundo, ocorrido em 2015, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, o papa teceu críticas incisivas contra a sociedade capitalista: "Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Esse sistema é insuportável."
Ao longo da história, a aproximação entre Jesus e Marx (principal referência da luta comunista moderna) foi sempre marginalizada e muito perseguida. Esse fato pode ser explicado pelo desconhecimento, por preconceitos; mas, sobretudo, pela manipulação  promovida para atender a interesses econômicos e políticos dominantes, que sempre lucraram com a separação.
Jesus se doou pela construção de um mundo em que todos tivessem vida em plenitude. Para tanto, defendeu a partilha radical do pão e uma forma de governo que, como fermento na massa, servisse à participação popular. Na Europa do século 19, Marx se envolveu na luta por uma sociedade sem exploradores e explorados. Suas teses revelaram ao mundo a origem das desigualdades sociais. Em suas respectivas épocas, ambos marcharam na contramão dos poderes estabelecidos.
Padre Ernesto Cardenal, participante da Revolução Nicaraguense, conhecida pelo massivo engajamento cristão, fala que Jesus e Marx são diferentes, mas não incompatíveis. Conta ainda:
“Declarei, muitas vezes, que sou marxista por Cristo e seu Evangelho. Que não fui levado ao marxismo pela leitura de Marx, mas pela leitura do Evangelho. O Evangelho de Jesus Cristo me fez marxista, como eu já disse e é verdade. Sou um marxista que crê em Deus, segue Cristo, e é revolucionário por causa do seu Reino.”
Na década de 1960, em meio a regimes militares que golpeavam a América Latina, o compromisso cristão com a causa do oprimido ressurgiu rebatizado de Teologia da Libertação. O marxismo serviu de fonte para compreensão e ação em uma realidade extremamente hostil à maioria da população.

A endemonização conservadora que se escancara em setores sociais privilegiados sempre que Jesus e Marx se descobrem íntimos é facilmente entendida por profecias como a de Che Guevara:
“A Revolução na América Latina só acontecerá quando os comunistas deixarem de ser preconceituosos com a fé dos cristãos; e os cristãos deixarem de ser proselitistas com os comunistas. Nesse dia, a Revolução será imbatível.”
Na semana em que multidões de pessoas comovidas do planeta inteiro se despediram de Fidel Castro, falecido aos 90 anos de idade, vale recordar o que disse certa vez o comandante da Revolução Cubana:
“Ele (Jesus Cristo) foi o primeiro comunista. Repartiu o pão, repartiu os peixes e transformou a água em vinho.”
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Para aprofundamento da temática:
- Fidel e a Religião, livro de Frei Betto.

- Descalço Sobre a Terra Vermelha, filme que conta a história de dom Pedro Casaldáliga. No youtube.


*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

GENTILÂNDIA


Eliton Meneses*


Normalmente vivo por cá, espremido nesse canto de praça, como Deus tem permitido. Fui despejado do quarto onde morava quando as coisas pioraram e deixei atrasar o aluguel. A mulher não aguentou essa minha vida. Ganhou o mundo com os meninos. Nunca mais tive notícias deles. Não sinto mais saudade. Nessa vida a gente se acostuma com tudo. Essa minha vida é difícil de seguir. Arrumei um carrinho de reciclagem, um colchão velho, umas caixas de papelão, um cobertor, um prato e uma colher e me estabeleci nesta praça. A polícia às vezes aparece, faz uma vistoria, mas quando encontra alguma coisa digo que é para o consumo próprio e acabam me deixando em paz. A venda é muito pouca, a moçada da universidade não tem grana. Na sexta à noite, a galera entendida se reúne na praça e melhora um pouco o movimento. Afora isso, tenho que complementar o lucro escasso com a reciclagem e um tempo pastorando carros.

A senhora idosa às vezes me traz um prato de comida, uns estudantes me dão um chocolate, um pessoal me traz uma camisa de partido...; vou assim tocando a vida, observando o movimento da praça. De manhã cedo chega a turma da caminhada, no fim de tarde a turma da academia da praça, no sábado os africanos jogam na quadra... Terça e quinta, sempre antes das seis, o pai e o menino de uns sete anos chegam para jogar. Penso em como andarão os meus. Admito que cometi muitos erros nessa vida. Quando quis me corrigir já era tarde. Não sei se tenho o que mereço. O certo é que as penas nunca correspondem às culpas.

Vejo o olhar indiferente dos caminhantes, a cara de nojo de um jovem gordo, o desdém do dono da banca de revista... Quando Amanda aparece à noite, negocio meia hora com ela. Alguém disse que este país não pode dar certo porque, dentre outras coisas, puta se apaixona e traficante se vicia. Amanda, coitada, de tão viciada, mal se sustenta em pé. Também nunca me deu sequer um desconto pelos muitos galanteios que lhe faço. Quanto aos traficantes, ao menos os da praça, de fato, não apuram nem para sustentar o vício.

Ando decrépito, sujo, maltrapilho e com poucos dentes. Os dois únicos amigos que me visitam são doidos varridos. Roberto, doido de nascença, e Nélson, enlouquecido pela pedra. Roberto há poucos dias tentou afugentar, com um porrete, um casal lésbico que se beijava na praça, mas acabou no hospital depois de uma pedrada nas costas... Nelson fugiu de um abrigo ainda criança e resolveu morar nos arredores da praça. Diz que ficou perturbado depois de uma surra da polícia. Tem alguns intervalos de lucidez, vive da caridade alheia, dorme no jardim da casa do Roberto e não furta nada de ninguém.

O dono da banca não tem vida. Fica de domingo a domingo no batente. Abre cedo e fecha tarde. Dizem que possui várias casas alugadas. Nunca me deu um cigarro. Não queria a vida do dono da barraca. A turma que dorme na praça consegue ser mais feliz. Não precisamos de muita coisa para viver. O passado não se muda. No futuro talvez reúna forças para uma mudança. O dono da barraca me recrimina porque não sou igual a ele. Roberto diz sempre que há tempo de plantar e há tempo de colher. Nélson costuma dizer que não preciso mudar, porque em time que está ganhando não se mexe.

* Eliton Meneses é poeta e defensor público no estado do Ceará.

sábado, 12 de novembro de 2016

“Fora, Temer!” e muito mais: manifestação popular fecha BR 304 por mais de 8 horas


Por Thales Emmanuel*

Ontem, 11 de novembro, em consonância com a luta nacional organizada por setores da classe trabalhadora, aproximadamente 1000 pessoas fecharam por mais de 8 horas o trânsito de veículos na BR 304, nas imediações do km 43, Aracati-CE.
O protesto, que começou por volta das 7 horas da manhã, contra a retirada de direitos promovida pelo governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB), tinha também outras reivindicações, voltadas principalmente para garantia do acesso à água, à terra e por soluções para os impactos causados pela obra de duplicação de trecho da citada rodovia.
Em torno da Organização Popular (OPA), participaram da mobilização lutadores e lutadoras de vários municípios da região, do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST), da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), do Sindicato dos Servidores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (SINDSIFCE) e de comunidades, rurais e urbanas, quilombolas, operários, professores/as e estudantes.
Uma audiência de negociação foi agendada com o DNIT, mas as pautas relacionadas ao governo estadual não obtiveram resposta. O silêncio do governador Camilo Santana (PT) revoltou a população:
“O que é preciso fazer mais para que sejamos escutados? (Suspiro) Seja lá o que for, faremos. Somos atingidos por problemas sérios aqui. A falta de água é um deles. Falta água para o povo, mas sobra para as fazendas de camarão, que estão poluindo tudo. E o governador, nada responde?! Para que serve um governante? Para quem trabalha? Também tem outras questões, como a da estrada, do cruzamento da CE com a BR. Queremos uma solução. Estão querendo acabar com o nosso histórico acesso.”, revelou, indignada, dona Fátima, moradora da Vila São José.       
No que diz respeito à dimensão nacional, a indignação não era menor:
“Fora, Temer! Pelo Poder Popular! Precisamos reconstruir o Brasil, necessitamos de outro modelo econômico, de outra política, precisamos de participação popular real, direta. Essa não é somente uma mobilização contra o autoritarismo desse governo golpista e seus parceiros. Esta é também uma luta por um projeto alternativo de sociedade. Essa mudança não virá de cima, mas de baixo, através de muito enfrentamento e organização.”, declarou Francisco Augusto, jovem manifestante.
Os/As participantes garantem se manter mobilizados/as até alcançarem os objetivos.

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A questão agrária e Florestan Fernandes


Por Thales Emmanuel*
A sociedade brasileira foi fundada em um processo violento de colonização. A implantação do modelo agroexportador conhecido como plantagem monoculturou a vida por aqui. A biodiversidade da floresta, a florestidade dos povos nativos, foi invadida pelas cercas sem alma das sesmarias. E assim se ergueu o Estado: Made in Europe, ora pois!
O capitalismo nascente criou e concentrou a propriedade, parto cesárea da política monoculturada que se instalou como única política aceitável. A mão que segurou o bisturi e degolou cabeças que resistiam, também assinou a Lei de Terras de 1850, ratificação da pilantragem real. A maior grilagem da história do Brasil embasou de garantias o racismo estrutural. A Abolição não veio sem luta, nem a Lei Áurea sem o aprisionamento prévio da terra. Exilada no morro, a África observa ao longe o continente inacessível que levantara.  
“Quem descobriu o Brasil?”, indaga o rádio, o livro, responde a palmatória, insistentemente. Uma décima quarta caravela desembarcou pelas páginas da língua oficial. A nação cresce devota de seu descobridor. Cuidado com a resposta, ela pode mostrar que a pergunta não faz, absolutamente, nenhum sentido. Maldita seja toda história cujo português é bem dizido!
“Essa terra tem dono!”, “Reforma Agrária: na lei ou na marra!”, a dominação jamais imperou sobre o silêncio. Em 1964, o povo gritou 64 vezes 64 pelas Reformas de Base; Cabral então reapareceu em tanques de guerra: “Golpe à vista!”. “Ressurge a Democracia”, declarou o editorial de O Globo em 2 de abril daquele ano. A espada e a cruz. US portugueses já não falavam português. Tivesse escrito “Democracia” com “d” pequeno, quem sabe não pertencesse ela à maioria.
Além de golpes de Estado, a concentração da propriedade da terra determinou a organização da produção. A tecnologia da Segunda Guerra atracou com o discurso do fim da fome, uma “Revolução Verde”, mas trouxe mesmo o envenenamento da vida. Na academia, nos centros de pesquisa, o natural tornou-se arcaico e os agrotóxicos foram laureados como símbolos da modernidade, da única modernidade bem-vinda ao campo brasileiro. O homo sapiens existe há 200 mil anos, mas foi somente a partir da segunda metade do século XX que o herbicida passou a estar na sua mesa.   
De lá até hoje, a “Revolução Verde” – verde-dólar –, em suas distintas fases, aumentou às alturas o lucro de banqueiros e industriais, as despesas do Estado – que é quem a financia –, o número de más-formações congênitas, o de mortes matadas pelos velhos e novos tipos de cânceres que vão sendo fabricados em fusão com a química-farmacêutica; a “Revolução Verde” multiplicou a fome no mundo, batendo recorde histórico.
No campo e na cidade, o Brasil foi formado por povos invadidos, despejados, retirantes-retirados, por povos que resistem ao “Descobrimento” ainda hoje.
Em 04 de novembro último, em Guararema-SP, a Polícia Militar, articulada com a Civil, invade a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), vinculada ao Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST). A PM dispara armas de fogo com munição letal. Como em 1500, nenhum mandado judicial é apresentado. Os capitães do mato se machucam ao pular o muro e depois agridem o bibliotecário da Escola, um senhor de idade, portador de mal de Parkinson, que tem seu rosto prensado contra o chão e uma costela quebrada. O jovem que alerta os algozes sobre as doenças da vítima é detido por “desacato à autoridade”.  
Nas mídias alternativas foi grande a repercussão. Tudo filmado! Muita gente chega em apoio ao MST. A Rede Globo, então, se vê obrigada a noticiar o fato. No programa do Fantástico do domingo seguinte, a emissora criminaliza a luta pela Reforma Agrária, dando a entender que o MST é formado por quadrilhas de bandidos, pretendendo justificar e banalizar a repressão do Estado e preparar terreno para outras violações. O alvo, na verdade, é a classe trabalhadora. É preciso quebrar a resistência dos de baixo. Típico de uma empresa que nasceu para criar ou adequar a interpretação dos fatos à ânsia de lucro de seus patrocinadores.
Aliás, vem das gerências de Marketing e de Comunicação dos Marinho a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”, tentativa de alavancar o ideário neocolonial do agronegócio.
Como diria o professor Florestan Fernandes: “Não se deixar cooptar, não se deixar esmagar, lutar sempre!”. Há mais de 500 anos, todas as possibilidades dos “descobertos” de se descobrirem passam por essas três premissas.


*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Do menos ruim ao menos ruim, até onde vamos?


Por Thales Emmanuel*

Outro dia, na fila do pão, escutei um sujeito que vestia vermelho, consternadamente, falar pra outro:
– Se Aécio tivesse sido eleito... Se tivéssemos votado nele, ao invés de Dilma... Ao menos não teria havido golpe.
Semana passada, um blog previa:
“Temer durará, no máximo, até fevereiro ou março do próximo ano. Há uma trama da cúpula burguesa para substituí-lo por uma junta parlamentar. Em seu programa, até Faustão fez críticas ao governo.”
Vai que isso acontece e ele retorne em 2018, indo para um segundo turno com Bolsonaro?!
“Putz! O pior dos cenários.”, pensei.
Mas logo me lembrei que uma rejeição generalizada das ruas poderia surgir daí: “Ufa! Finalmente, a greve geral.”
“Intervenção militar para pôr fim ao caos social!”. Não é assim que a repressão justifica o esmagamento das forças populares? Em 64 foi por conta da “ameaça comunista”. Sem o componente ideológico, como dizem, que outro “perigo” se apresentaria agora?
“Terrorismo!!”. Merda! O que estava ruim pode ficar ainda pior.
Lá vem os Marines numa chuva de paraquedas! O navio bélico USS Lassen atraca na costa baiana. Na invasão, militares explicam para o povo que agem em defesa da democracia, contra a ameaça do Estado Islâmico. Argumentam com seus projéteis calibre 45. Nosso Capitão América estupra e tortura. Tem nou-ral nesse ramo. Os destroços de Afeganistão e Iraque confirmam as intenções da missão da classe dominante estadunidense.
Não sei ao certo quando tudo começou. Na fila do pão, perguntei ao rapaz de vermelho por que votara em Dilma:
– Porque era a menos ruim.
– E por que agora preferiria a vitória de Aécio Neves? – Insisti.
– Aécio seria menos ruim que o golpe. Menos ruim que Temer.
Abandono do trabalho de base pelo tempo de TV do programa eleitoral. Socialismos acomodados à lógica burguesa de fazer política. Aceitação crítica da barbárie. Política como escolha do menos ruim. Do menos ruim ao menos ruim, o escorregar contínuo em direção ao mais pior.
Paguei o pão e enlacei a sacola. Quando já saía do mercadinho, um senhor, aparentemente de muita idade, segurou-me pelo antebraço com sua mão calejada. Com um jeito caracteristicamente camponês, falou-me olhando firme nos olhos:  
– Não é porque estamos num tempo ruim que devemos esquecer o que é bom.

 *Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Ressaca tem cura


Por Thales Emmanuel*

A recente derrota eleitoral das forças progressistas deixou muita gente de ressaca. Boa parte esquece, no entanto, que o que antecedeu a náusea não foi a vitória dos anos “gloriosos” do PT, mas o inebriar delirante de falsas perspectivas.
As manifestações de massa em 2013, o aumento progressivo das abstenções eleitorais de 1989 para cá, a desconfiança crescente em relação aos partidos políticos, a venda do voto, a repercussão praticamente nula do “vote consciente”, os ditos populares (“É tudo ladrão!”)...
Encabrestada pelas armas de festim disponibilizadas pela burguesia, a esquerda empalidece com a sangria contínua de suas artérias. A parte ora mais expressiva dela vê na classe trabalhadora um eleitorado; na democracia da burguesia, a sua democracia, e transforma a Rede Globo, o golpe em maus aceitáveis, necessários. As ruas são encaradas como suporte à barganha parlamentar. Fora disso, é desordem, vandalismo. Regradas pela política da minoria, a maioria vermelha é dobrada e vencida como força menor.
Não fosse a já esquecida delação premiada contra Romero Jucá, nenhuma notícia se teria sobre a movimentação nos quartéis. Para muitos, a interferência direta da CIA em todo processo recente ou é coisa de filme de ficção ou defeito normal de uma frágil democracia em construção. Um pedido de desculpas do governo estadunidense e tá tudo certo.
A autodomesticação da esquerda se constitui no principal feito da direita nas últimas décadas.
Retomar e estreitar os vínculos com as massas oprimidas e exploradas, extraindo desta relação novos modelos organizativos e uma estratégia de transformação radical da sociedade. Embasar, popularizar a história da luta de classes e de sua impossível conciliação. Nesta caminhada, aprender a ouvir o povo, oxigenando e tornando viva a teoria. O Poder Popular, entendido como resposta prática desta interação, fará da luta direta autônoma sua principal forma de participação política.    
São tarefas gratuitas que precisam ser incorporadas ao cotidiano das organizações de esquerda. Se não tivermos desaprendido a aprender, venceremos, como nos ensina nossa querida Rosa. Ou fazemos isso ou testemunharemos como cúmplices, ainda que críticos, a barbárie promovida pela única lógica de funcionar do capital. 

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

sábado, 24 de setembro de 2016

FANTASMAS DO PASSADO


Por Eliton Meneses*


Todo o discurso reacionário, que vocifera raivosamente preconceito e ignorância, no propósito de estabelecer um projeto de poder alinhado com os interesses da elite, pode ser desmontado a partir da leitura dos sete primeiros (apenas dos sete primeiros) artigos da Constituição Federal. Eis alguns exemplos:

1) A nossa elite, como dizia Celso Furtado, vive com um pé no Brasil, mas com o coração na Europa e nos Estados Unidos, e, por esse sentimento, se insurge contra qualquer aproximação com os países da América Latina, num desejo inconsciente de que o Brasil continue na condição de mera colônia das economias hegemônicas; no entanto, o parágrafo único do art. 4.º da Constituição Federal dispõe que: "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações." Ou seja, a Constituição Federal orienta que a integração prioritária ocorra com os povos da América Latina e não com os europeus e norte-americanos, como deseja a elite;

2) A nossa elite tem ojeriza ao modelo político adotado, por exemplo, por Cuba, Venezuela e Bolívia, e, por essa razão, deseja que o Brasil lhes vire as costas; no entanto, o art. 4.º da Constituição dispõe que a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, dentre outros princípios, pelo da autodeterminação dos povos e pelo da não-intervenção (incisos III e IV), o que impede que o Brasil se imiscua na política interna de Cuba, Venezuela e Bolívia, bem como que desista da integração com esses povos por razão de política interna;

3) O ódio elitista contra os programas sociais, alimentado por preconceitos, especialmente contra pobres, negros, nordestinos e comunidade LGBT, não sabe que o art. 3.º da Constituição Federal encarta como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV);

4) A nossa elite empregadora, herdeira de uma tradição escravagista, não é muito chegada a direitos trabalhistas, mas é o art. 7.º da Constituição Federal que atribui, justa e merecidamente, um considerável rol de direitos aos trabalhadores urbanos e rurais, muitos dos quais também assegurados aos trabalhadores domésticos (parágrafo único);

5) O discurso autoritário e prepotente da elite prega o uso da força e da intolerância como solução imediatista para muitos dos nossos males, a partir sobretudo do endurecimento da legislação penal, cujo alvo quase exclusivo seria a população vulnerável social e economicamente, mas felizmente esse discurso horrendo esbarra em muitas garantias constitucionais; com efeito, o art. 1.º da Constituição Federal dispõe como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (inciso III), o art. 4.º da mesma Constituição Federal adota o princípio da prevalência dos direitos humanos e o art. 5.º elenca uma série de direitos e garantias fundamentais do cidadão e da cidadã, todos tendentes a desautorizar qualquer discurso autoritário...

Enfim, parafraseando Renato Russo, a onda reacionária não respeita a Constituição, mas diz que acredita no futuro da nação...



*Eliton Meneses é poeta e defensor público no estado do Ceará.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

OUVERDOSE DE HERÓIS E FABRICAÇÃO DE SUPERESPECTADORES



Por Josenilson Doddy*

Heróis, figuras de um poder extremamente ideológico, capazes de manipular a construção da consciência crítica das pessoas. Por trás de cada figura heróica e suas narrativas históricas existe um jogo de interesses que convida a segui-la.

Qual criança ou adulto não deseja ser herói, dotada de superpoderes e personalizando o que há de mais belo e de mais justo? Defensores do bem estar social e contra todos aqueles que se encontram do lado do mal.

A ficção exerce imenso poder sobre a realidade. Através das telinhas superluminosas da mídia somos abduzidos à cultura do comodismo. Para que preocupação? Se as coisas não vão bem, acalme-se! Logo, logo um super-herói aparecerá trazendo a salvação.  

No mesmo rumo vai a ideia de resolver tudo pelo povo, em nome do povo. Quem disse que uma figura dotada de poderes sobre-humanos é mais capaz de resolver os problemas sociais do que o próprio povo organizado, atingido diretamente por tais problemas? “Quem disse que o cego não pode enxergar?”

Heróis não podem ser confundidos com mártires. Enquanto um separa, personaliza e acomoda; o outro tem sua trajetória marcada pela mistura, coletivizando-se e contribuindo para o despertar da consciência crítica. No encalço da martirização há sempre um rastro de transformação, de semente de libertação. Onde pisam os heróis, nem tiririca nasce.

Na estratégia de manipulação de mentes da política partidária eleitoral este processo é bastante utilizado para a aparição apoteótica dos candidatos. São os heróis do povo e seus superpoderes. As câmaras parlamentares? A própria Liga da Justiça. Para que participação popular nas decisões, quando se tem superrepresentantes? De que vale a luta popular, diante de superdiscursos? O imaginário coletivo é invadido pela ficção sem que, antes, esta seja identificada como tal.

No judiciário, os heróis de toga são apresentados como semideuses guardiões da Verdade. Além do poder de raio-X, são imunes à parcialidade das urnas, à "prestatividade" das corporações e à criptonita. O fato de falarem a mesma língua da mídia comercial e outros setores conservadores não passa de uma supercoincidência, superrecorrente devido à supercompetência em separar o legal do ilícito nos autos.

É em nome do povo que o superjuiz, Sérgio Mouro, vem intimando seletivamente os aqui-inimigos da Verdade. Que Verdade?! Ora, pois! A única! Não existe conciliação de classes quando o assunto é exercício de poder na Liga da Justiça.

Os heróis são internalizados nas consciências para que o povo não enxergue a realidade, para que não veja a trama dominante contida nas linhas e entrelinhas da Veja. Na sociedade capitalista, a burguesia controla os meios de difusão de ideias e, consequentemente, os meios de fabricação de heróis.

Assim, chega de heróis, de estruturas fabricantes de heróis! Construamos com as nossas próprias mãos o poder popular, capaz de apontar no rumo da sociedade que precisam e almejam as pessoas cuja força reside na organização. “Sejamos nós que conquistemos a terra mãe, livre e comum.”

*Josenilson Doddy é militante da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e da Organização Popular (OPA).

sábado, 3 de setembro de 2016

"Não se pode servir a dois Senhores"

PeJulio Ferreira, C.Ss.R

Vejo-me mais uma vez diante de uma cartilha da CNBB motivando os cristãos a participarem da política, agora intitulada: "O cidadão consciente participa da política." Já vimos outras como: "Voto não tem preço, tem consequência."  

Logo na introdução da cartilha, uma fala do Papa Francisco: 
"Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos fazer como Pilatos: lavar as mãos. Não podemos! Devemos nos envolver na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política." 

O conteúdo da cartilha não traz nada de novidade, apenas repete as mesmas generalizações de sempre: "Para escolher e votar bem, é imprescindível conhecer, além dos programas dos partidos, os candidatos e sua proposta de trabalho, sabendo distinguir claramente as funções para as quais se candidatam." E ainda: "A Igreja Católica não assume nenhuma candidatura, mas incentiva os cristãos leigos e leigas, que têm vocação para militância político-partidária, a se lançarem candidatos." 

A meu ver, essa relação da Igreja com a política parece com aquilo que Jesus fala sobre ser morno e ser vomitado. Mesmo que o Papa Francisco fale em não sermos como Pilatos, acabamos sendo. Enquanto instituição, lavamos as mãos. Deixamos a responsabilidade para o cristão leigo e, ao mesmo tempo, não damos suporte, apenas "incentivamos". Esse é uma dos motivos de termos "cristãos" servindo a dois senhores, haja vista a posição dos deputados ditos católicos durante o processo de impedimento da Presidenta Dilma.
  
Se o Papa Francisco diz que esse sistema não se sustenta mais, pois é insuportável, como continuar a defendê-lo? Ou como não atacá-lo? 

A própria CNBB, em nota, durante todo esse processo, mesmo sabendo que estávamos diante de mais um golpe, lavou as mãos, dizendo apenas 
"Ao se pronunciar sobre questões políticas, a CNBB não adota postura político-partidária. Não sugere, não apoia ou reprova nomes, mas exerce o seu serviço à sociedade, à luz dos valores e princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja. Desse modo, procura respeitar a opção política de cada cidadão e a justa autonomia das instituições democráticas, incentivando a participação responsável e pacífica dos cristãos leigos e leigas na política. "

Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor. Essas palavras de Desmond Tutu devem ecoar em nós, pois não tem como se fazer política ficando em cima do muro. E esse não foi o legado que Jesus Cristo deixou para nós. Com certeza os omissos serão julgados pela História. o se pode cair no simplismo de apelar para a consciência, quando se está diante de um projeto declarado de morte imposto pela burguesia. 

Os ritos processuais em ralação a Jesus também foram respeitados e, como nós sabemos, mataram um inocente. 

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

CARTA-DENÚNCIA CONTRA REPRESSÃO A MOVIMENTOS E MILITANTES DAS CAUSAS POPULARES



Aracati-CE, agosto de 2016.

Nos livros, a palavra democracia significa poder exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria. Mas o que é então democracia quando, no mundo real, esta serve apenas a uma minoria?
Na década de 1964, tentamos alargá-la com as Reformas de Base, mas veio o golpe. Em 1989, voltamos a eleger diretamente a presidência da república depois de quase três décadas, mas aí já existia a Rede Globo e a manipulação pela concentração de poder sobre os meios de comunicação. Atualmente, deparamo-nos com mais um governo ilegítimo, colocado e mantido por uma aliança que vai do judiciário à grande mídia empresarial. Direitos negados, usurpados do povo, e sendo este ao mesmo tempo maioria.
No capitalismo, em regra por ele mesmo inviolável, instituições que, dizem, deveriam defender o povo, ou não funcionam ou funcionam contrárias ao próprio povo. Em virtude disso, sem canais oficiais pelos quais possa colocar e ter atendido suas demandas, compelido pelo agravamento das necessidades, o povo toma então a iniciativa da mobilização, vai àsj ruas, ocupa órgãos do Estado; enfim, a pressão popular passa a ser a única maneira encontrada de se fazer ouvir. Mas aí vem a perseguição, a criminalização dos movimentos.
Na democracia da minoria, a repressão realizada pelos órgãos que, por lei, deveriam proteger o povo, demonstra que a política não será admitida como exercício de poder cotidiano, não para a maioria, devendo esta se restringir ao período eleitoral e ter como essência a terceirização deste poder, além de estar permanentemente sujeita a reveses, de acordo com as flutuações dos interesses econômicos dominantes. Sobre este fato, a história comprova: sem democracia na economia, sem democracia no controle dos meios de produção, não há democracia na política, ao menos não a democracia em que o poder é exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria. A FIESP que o diga, há mais de cinquenta anos, impunemente, encabeçando golpes.
Não diferente de muitos outros locais, em Aracati-CE, os canais de participação popular na política vêm sendo abertos na marra, às custas de muita luta e autonomia. Percebendo-se padecedor de mazelas comuns, o povo aos poucos vai se fazendo também militante de causas comuns. “Se eles têm o poder do dinheiro, nós temos a força da união”, como ensina uma palavra de ordem da Organização Popular (OPA), atuante desde 2010 no município.
A OPA e demais movimentos populares existentes em Aracati estão em constante processo de criminalização por parte de poderes econômicos e de instituições do Estado da democracia da minoria. Teve hora que a injustiça oficial local foi tão escancarada, que uma juíza chegou a ser afastada de suas funções por favorecimento comprovado a grandes empresários. A militância popular tem enfrentado permanentes ameaças e tentativas de assassinato e boa parte já fora intimada a depor nos tribunais. São Sem Terra, Sem Teto, pescadores e pescadoras artesanais, jovens, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, perseguidos por cobrar algo que lhes foi historicamente tirado e, portanto, é-lhes devido: o direito à vida digna.
O episódio mais recente de repressão ocorreu este mês, quando comunidades impactadas pela obra de duplicação da ponte Juscelino Kubitschek, sobre o Rio Jaguaribe (projeto de construção civil que se impôs sobre a invisibilização da vida humana existente ali), animadas pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que integram a OPA, decidiram fechar a BR 304 para que uma antiga pauta de reivindicação, que se arrasta há aproximadamente 10 anos, fosse atendida.
Por solicitação do Superintendente Substituto da Regional no Ceará da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Wilton Mourão Torquato, a companheira Jocélia Ribeiro, moradora da comunidade Pedregal, atingida pela obra, e militante das CEBs e da OPA, foi notificada sob alegação de “Abuso do Direito à Livre Expressão”. O documento revela ainda atuação do serviço de inteligência do órgão contra o movimento, numa nítida inversão de valores e tentativa de intimidação, como ocorria de forma mais evidente nos idos de 1964-86.
Assim, repudiamos contundentemente o autoritarismo de práticas como estas, que negam ao povo o direito de se manifestar livremente, sobretudo quando outros direitos lhes são negados. Numa democracia, tais instituições deveriam servir a efetivação de direitos, e não o contrário.
As causas populares são causas coletivas, a luta é coletiva e ambas seguirão coletivamente adiante, até que a superação dos problemas sociais, em sua raiz, torne-se marco definitivo para a inexistência da necessidade de manifestações do tipo. Até que a democracia, entendida como poder exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria, seja uma realidade experimentada em sua completude. 
Jocélia somos nós. Nós somos Jocélia.
Lutar não é crime!
Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP
Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra – MST
Organização Popular – OPA
Missionários Redentoristas de Fortaleza – Defesa da Vida
Ângela Tavares Madeiro – Assistente Social e Professora e membro do Conselho Municipal da Mulher de Aracati

Congregação Missionária da Sagrada Família

Eliton Menezes - Defensor Público do estado do Ceará
Comunidades Eclesiais de Base da Regional I – CEBs do Ceará
Centro Acadêmico do Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe
PROMULHER, do Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe

Unidade Classista

Instituto Caio Prado Júnior
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Diocese de Limoeiro do Norte-CE

Maria das Graças e Silva - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco

Virgínia Fontes - Historiadora professora da Universidade Federal Fluminense e Fiocruz

Anderson Deo - Professor da Universidade Estadual Paulista

Padre Júnior Aquino - Professor da Faculdade Católica de Fortaleza

Articulação Nordeste das Pastorais Sociais, CEBs e Organismos

Cáritas Brasileira - Regional Ceará

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

NOSSO TEMPO




                                                                                      *Por: Eliton Meneses


Não serei o arauto do apocalipse;
Não cairei em cantilena mendaz;
Cansei de temer algoz rancoroso;
Cansei de esperar heroísmo fugaz;
O mundo segue a trilha lentamente
No compasso de caminheiro sagaz;
A esperança se faz no tempo longo;
A ruína na pressa do dragão voraz.
Sairei taciturno pela rua já deserta,
À espera de uma nova gente audaz,
Com força para um novo recomeço,
Às voltas com um bando mui tenaz.
Sigo o farol gauche da humana saga:
Sonho de um mundo de amor e paz.
Se tu não segues rumo ao horizonte,
Não me peças que eu ande para trás.


 * Eliton Meneses é poeta e Defensor Público no estado do Ceará.