sexta-feira, 26 de agosto de 2016

CARTA-DENÚNCIA CONTRA REPRESSÃO A MOVIMENTOS E MILITANTES DAS CAUSAS POPULARES



Aracati-CE, agosto de 2016.

Nos livros, a palavra democracia significa poder exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria. Mas o que é então democracia quando, no mundo real, esta serve apenas a uma minoria?
Na década de 1964, tentamos alargá-la com as Reformas de Base, mas veio o golpe. Em 1989, voltamos a eleger diretamente a presidência da república depois de quase três décadas, mas aí já existia a Rede Globo e a manipulação pela concentração de poder sobre os meios de comunicação. Atualmente, deparamo-nos com mais um governo ilegítimo, colocado e mantido por uma aliança que vai do judiciário à grande mídia empresarial. Direitos negados, usurpados do povo, e sendo este ao mesmo tempo maioria.
No capitalismo, em regra por ele mesmo inviolável, instituições que, dizem, deveriam defender o povo, ou não funcionam ou funcionam contrárias ao próprio povo. Em virtude disso, sem canais oficiais pelos quais possa colocar e ter atendido suas demandas, compelido pelo agravamento das necessidades, o povo toma então a iniciativa da mobilização, vai àsj ruas, ocupa órgãos do Estado; enfim, a pressão popular passa a ser a única maneira encontrada de se fazer ouvir. Mas aí vem a perseguição, a criminalização dos movimentos.
Na democracia da minoria, a repressão realizada pelos órgãos que, por lei, deveriam proteger o povo, demonstra que a política não será admitida como exercício de poder cotidiano, não para a maioria, devendo esta se restringir ao período eleitoral e ter como essência a terceirização deste poder, além de estar permanentemente sujeita a reveses, de acordo com as flutuações dos interesses econômicos dominantes. Sobre este fato, a história comprova: sem democracia na economia, sem democracia no controle dos meios de produção, não há democracia na política, ao menos não a democracia em que o poder é exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria. A FIESP que o diga, há mais de cinquenta anos, impunemente, encabeçando golpes.
Não diferente de muitos outros locais, em Aracati-CE, os canais de participação popular na política vêm sendo abertos na marra, às custas de muita luta e autonomia. Percebendo-se padecedor de mazelas comuns, o povo aos poucos vai se fazendo também militante de causas comuns. “Se eles têm o poder do dinheiro, nós temos a força da união”, como ensina uma palavra de ordem da Organização Popular (OPA), atuante desde 2010 no município.
A OPA e demais movimentos populares existentes em Aracati estão em constante processo de criminalização por parte de poderes econômicos e de instituições do Estado da democracia da minoria. Teve hora que a injustiça oficial local foi tão escancarada, que uma juíza chegou a ser afastada de suas funções por favorecimento comprovado a grandes empresários. A militância popular tem enfrentado permanentes ameaças e tentativas de assassinato e boa parte já fora intimada a depor nos tribunais. São Sem Terra, Sem Teto, pescadores e pescadoras artesanais, jovens, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, perseguidos por cobrar algo que lhes foi historicamente tirado e, portanto, é-lhes devido: o direito à vida digna.
O episódio mais recente de repressão ocorreu este mês, quando comunidades impactadas pela obra de duplicação da ponte Juscelino Kubitschek, sobre o Rio Jaguaribe (projeto de construção civil que se impôs sobre a invisibilização da vida humana existente ali), animadas pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que integram a OPA, decidiram fechar a BR 304 para que uma antiga pauta de reivindicação, que se arrasta há aproximadamente 10 anos, fosse atendida.
Por solicitação do Superintendente Substituto da Regional no Ceará da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Wilton Mourão Torquato, a companheira Jocélia Ribeiro, moradora da comunidade Pedregal, atingida pela obra, e militante das CEBs e da OPA, foi notificada sob alegação de “Abuso do Direito à Livre Expressão”. O documento revela ainda atuação do serviço de inteligência do órgão contra o movimento, numa nítida inversão de valores e tentativa de intimidação, como ocorria de forma mais evidente nos idos de 1964-86.
Assim, repudiamos contundentemente o autoritarismo de práticas como estas, que negam ao povo o direito de se manifestar livremente, sobretudo quando outros direitos lhes são negados. Numa democracia, tais instituições deveriam servir a efetivação de direitos, e não o contrário.
As causas populares são causas coletivas, a luta é coletiva e ambas seguirão coletivamente adiante, até que a superação dos problemas sociais, em sua raiz, torne-se marco definitivo para a inexistência da necessidade de manifestações do tipo. Até que a democracia, entendida como poder exercido pelo povo, sendo este ao mesmo tempo maioria, seja uma realidade experimentada em sua completude. 
Jocélia somos nós. Nós somos Jocélia.
Lutar não é crime!
Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP
Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra – MST
Organização Popular – OPA
Missionários Redentoristas de Fortaleza – Defesa da Vida
Ângela Tavares Madeiro – Assistente Social e Professora e membro do Conselho Municipal da Mulher de Aracati

Congregação Missionária da Sagrada Família

Eliton Menezes - Defensor Público do estado do Ceará
Comunidades Eclesiais de Base da Regional I – CEBs do Ceará
Centro Acadêmico do Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe
PROMULHER, do Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe

Unidade Classista

Instituto Caio Prado Júnior
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Diocese de Limoeiro do Norte-CE

Maria das Graças e Silva - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco

Virgínia Fontes - Historiadora professora da Universidade Federal Fluminense e Fiocruz

Anderson Deo - Professor da Universidade Estadual Paulista

Padre Júnior Aquino - Professor da Faculdade Católica de Fortaleza

Articulação Nordeste das Pastorais Sociais, CEBs e Organismos

Cáritas Brasileira - Regional Ceará

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

NOSSO TEMPO




                                                                                      *Por: Eliton Meneses


Não serei o arauto do apocalipse;
Não cairei em cantilena mendaz;
Cansei de temer algoz rancoroso;
Cansei de esperar heroísmo fugaz;
O mundo segue a trilha lentamente
No compasso de caminheiro sagaz;
A esperança se faz no tempo longo;
A ruína na pressa do dragão voraz.
Sairei taciturno pela rua já deserta,
À espera de uma nova gente audaz,
Com força para um novo recomeço,
Às voltas com um bando mui tenaz.
Sigo o farol gauche da humana saga:
Sonho de um mundo de amor e paz.
Se tu não segues rumo ao horizonte,
Não me peças que eu ande para trás.


 * Eliton Meneses é poeta e Defensor Público no estado do Ceará.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Presente de Dia dos Pais


Por Thales Emmanuel*

No dia 07 de maio deste ano, em Fortaleza-CE, um acidente no Km 06 da BR 116 gerou grande comoção social.
Era sábado, véspera de Dia das Mães. Laís e Raphaella – mãe e filha –, mais Fátima – amiga e vizinha –, voltavam para casa depois de participarem de uma celebração religiosa.
Segundo relatos, mais ou menos no mesmo horário, Abelardo, um jovem de 24 anos, tomava de assalto uma caminhonete e, na tentativa de fuga, sendo perseguido pela Polícia Militar, colide violentamente com o veículo que conduzia as três mulheres, que morrem na hora. Abelardo sobrevive com escoriações no corpo.
Em 2015, Márcia, designer de interiores, não só frustrou a mídia sensacionalista, que já encampava a carnificina propagandística pela redução da maioridade penal, como surpreendeu muita gente ao provocar reflexões na contramão do que somos induzidos e coagidos a sentir diante de situações como a que precisou enfrentar. Seu ex-marido, médico, foi morto a facadas quando pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro-RJ. Em meio à tragédia, declarou a mulher: “Ele foi uma vítima de vítimas”.
A ideologia dominante não significa somente a reprodução de ideias convenientes a uma determinada lógica de dominação. Nossos sentimentos, a maneira como afloram nas mais variadas circunstâncias, são igualmente produtos e, em regra, sustentáculos de uma mesma normatividade social.
Assim, diante da dor da perda abrupta, não é difícil entender porque somos levados a confundir justiça com vingança pessoal, castigo e repressão policial com segurança.
A ocultação proposital da raiz do problema não desponta sem o arrebatador entorpecimento das estratégias propagandísticas, que nos fazem vagar delirantes, na superficialidade das abordagens.
Para bem, a história, mesmo a história de uma tragédia, não morre com a morte nem é encarcerada com a prisão.
Abelardo e sua família são do interior. Durante algum tempo, foram acampados da Reforma Agrária. Estiveram em baixo de lona preta, junto com outras famílias, às margens de uma grande propriedade vazia de produção e de sentido social.
Muito jovem e praticante de artes marciais, pretendia organizar um espaço e dar aula a quem quisesse da comunidade, logo que a terra fosse conquistada. Mas o latifúndio se manteve intacto ante qualquer bom senso em relação à vida daquelas famílias e a terra seguiu cercada e abandonada, sem ser entregue aos trabalhadores e trabalhadoras.
Abelardo, então, foi embora com seus pais, saiu do acampamento. Anos depois reapareceu nas páginas policiais de jornais de todo país.
Algumas perguntas são inevitáveis: Qual a responsabilidade do latifúndio e de seus governos na morte das três mulheres? Onde estariam os Abelardos da vida, fazendo o que, caso a Reforma Agrária fosse já uma realização e não uma antiga reivindicação popular?
Em Goiás, dois militantes do Movimento Sem Terra estão presos, enquadrados na Lei Antiterrorista, por lutarem pelo direito à terra. A Justiça... quanto sangue inocente há em suas mãos? Quantas mães morrerão ainda, até que se entenda que a propriedade não pode estar acima da vida? Até que o Estado, que tem isso como cláusula pétrea, seja abolido?
Não se trata aqui de isentar o indivíduo de suas responsabilidades. Antes, porém, de relembrar que todo problema pessoal é um problema social e todo problema social é um problema familiar, pessoal. Queiramos ou não.


Dia dos Pais está chegando. Que sociedade gostaria de receber de presente? Que mundo pretende deixar para a geração de futuros pais? O que estamos dispostos a construir? O que fazemos para destruir o que nos destrói?

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).   

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Somente a opção preferencial pelos pobres já não basta

Por Josenilson Doddy* 

Qual a utilidade da pobreza, senão para servir como meio de sustentação desse sistema insuportável?  
Ora, é preciso que se tenha pobres para que a classe burguesa siga dominante. O exército industrial de reserva é um exemplo. A fabricação da pobreza marginal aos meios de produção determina o impiedoso grau de exploração da pobreza incluída no trabalho assalariado. 
Mas o capitalismo, incompatível com a realização da justiça e da igualdade sociais, depara-se, mortalmente, com a classe trabalhadora (pobres), a única força propulsora capaz de superá-lo.   
O antagonismo das classes torna ficção qualquer tentativa que tenha no diálogo entre exploradores e explorados o melhor jeito de resolver os conflitos. 
As Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, a parte da Igreja cujo carisma passa pela opção preferencial pelos pobres, têm a grande missão de fazer trabalhadores e trabalhadoras perceberem sua força transformadora em meio a tantos sofrimentos. 
As CEBs não podem lidar com o sofrimento dos pobres seguindo a cartilha da dominação. O sentimento de pena conduz a gestos de caridadegestos de esmola, esmola de pão, esmola de dedicação. Por isso desvia os rumos do projeto de justiça e vida plena. 
Numa sociedade de tanta fartura, a pobreza só pode ser um fenômeno artificial. O pobre é, na verdade, empobrecido.  
assistencialismo é a política de dominação que bloqueia o acesso dos/as empobrecidos/as às origens do empobrecimento. Por essa razão, a práxis da militância das causas populares não pode se furtar em questionar a pobreza: De onde vem?   
A compaixão faz sentir nas entranhas a dor "alheia". A indignação sacode corpo e alma para uma atitude. O olhar alimenta esperanças rebeldes, contribuindo para que trabalhadores e trabalhadoras percebao quão necessário é se organizar e lutarOs conflitos entre as classes não se iniciarão aíapenas se tornarão perceptíveis, compreensíveis. Os/As empobrecidos/as, despidos/as de ilusões, estarão preparados/as para os embates necessários. 
Para a construção de uma nova sociedade, a preferência pelos/as pobres é um primeiro passomaspara que de fato a derrubada do sistema capitalista aconteça, é preciso ir além, é preciso atuar para que os/as próprios/as pobres se unam e façam acontecer.     


*Josenilson Doddy é militante da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e da Organização Popular (OPA).