quinta-feira, 15 de março de 2018

deus Mercado e o Dogma da Dívida Eterna*


Por Thales Emmanuel**

“Todos acreditam em Deus, porque Deus é aquilo que colocamos em primeiro lugar.” As palavras do padre Albert Nolan nos conduzem a uma inevitável e importante reflexão: Quem é Deus, para mim? Que deus governa a sociedade em que vivemos? As perguntas aparecem separadas por questão puramente metodológica, já que é impossível saber quem eu sou e, consequentemente, a ideia que tenho do divino, separando-me do meio em que construo relações sociais e que, ao mesmo tempo, sou construído por elas.  
Se Deus é sinônimo de prioridade de vida, como sugere Nolan, deduzimos então que as crenças, tanto individuais como sociais, revelam-se mais pelo que se é experimentado, praticado, do que pelo que se é falado. Assim, as respostas sobre “quem é Deus?”  se encontram, para o indivíduo, no seu fazer cotidiano; para a sociedade, na forma como organiza e estrutura suas prioridades.
O deus que comanda a sociedade capitalista se chama Mercado. Mercado é um deus que se manifesta à primeira vista pela total devoção dos seres humanos ao mundo das coisas. Sua teologia é simples e fácil de entender: quem possui bens, é gente de bem; quem não possui, nada é ou é sujeito do mal. Quem tem mais propriedades é mais ungido do que os proprietários menores e os sem propriedade são os escolhidos para servir, como descartáveis, à penitência do trabalho assalariado. Isso quando há oferta de emprego, algo cada vez mais raro, já que a tecnologia, enquadrada no rito devocional que sacraliza a propriedade privada dos meios de produção, substitui de forma acelerada o ser humano pela máquina. O espírito que rege a sobrevivência dos sem emprego, deus Mercado batizou com o nome de “empreendedorismo”. E o Estado, ao invés de promotor de direitos, revelou-se como sendo a força pela qual o todo poderoso opera o milagre de fazer com que a maioria se submeta aos interesses da minoria.  
Os bancos assumem hoje em dia o papel de sumo sacerdote do sistema. São os principais intermediários da relação entre Mercado e a sociedade em geral. Definem critérios de desenvolvimento econômico, políticas de Estado e acorrentam nações inteiras com o dogma da “dívida pública”. Quem ouse questionar esse dogma, corre sérios riscos de excomunhão. Entra governo, sai governo, e nada se fala, muito menos se faz, para auditar a dívida.
“Auditoria é um instrumento para investigação de dados e documentos.” Uma maneira de saber quem contraiu a dívida, em que condições, quem se beneficiou com ela, em que foram aplicados os recursos, que fatores a fizeram crescer e o que há de fraudulento e de legítimo em todo o processo. No Equador, uma auditoria oficial realizada pelo governo a partir de 2007 resultou na anulação de 70% da dívida externa em títulos daquele país. No Brasil, o governo golpista de Michel Temer oferece como sacrifício os direitos da classe trabalhadora e do povo mais empobrecido em honra ao juramento feito no altar da bolsa de valores. Aproximadamente 40% do Orçamento Geral da União atualmente é  revertido para pagamentos de juros e amortização. Para termos noção do tamanho da violação, em 2011, menos de 0,01% do Orçamento da União foi “investido” na área de habitação. Valor este reduzido à nada com a recente imposição golpista do congelamento por vinte anos em investimentos sociais. E o Brasil com suas 33 milhões de pessoas sem teto! 
Já se perguntou algum dia quantas vidas são sacrificadas em adoração de Mercado? Esse deus não se comove ante o genocídio planejado. Ele inventou a culpa foi para os endividados, não para os credores.
Estudos estimam que a dívida pública da América Latina já foi paga integralmente mais de seis vezes. No entanto, na maioria dos países ela continua aumentando a passos acelerados. No Brasil, em 2011 seu estoque alcançou o montante de 3.228.167.962.882,24 (3 trilhões, 228 bilhões, 167 milhões, 962 mil, 882 reais e 24 centavos). Em 2017, a cifra alcançou os 5.580.745.791.677,64 (5 trilhões, 580 bilhões, 745 milhões, 791 mil, 677 reais e 64 centavos), segundo dados do Banco Central, citados pela iniciativa popular Auditoria Cidadã da Dívida. 
A grande mídia, responsável por espalhar a boa nova de Mercado, explica o fenômeno do “quanto mais se paga, mais se deve” como sendo mistério sobrenatural ou obra da imperfeição humana. Expiação necessária à salvação do desenvolvimento do modelo econômico. No entanto, o fato é bem outro. Nada de mistério ou incapacidade administrativa! Trata-se é de uma perversa lógica de concentração de riquezas.
Os bancos não emprestam com a finalidade de um dia verem as dívidas quitadas. Com as exigências que fazem como condição a concessão do recurso, sentenciam o que deve ser o grosso da política econômica do país recebedor. Alteram leis, definem o destino prioritário da aplicação do que sai dos cofres públicos, interferem na regulamentação do sistema eleitoral e por aí vai. A decisão governamental pela privatização do patrimônio público, por exemplo, passa pelo aval e pela ordem dos bancos, que ficam com o montante apurado, como manda a lei. A dívida não existe para ser quitada, mas para ser paga uma, duas, setenta vezes sete vezes.
Quem acredita na dívida eterna sabe que ela quebrará quantas vezes for possível a economia do país devedor, forçando-o recorrentemente a contrair novos empréstimos, que não aparecerão antes que os votos de total obediência ao mais recente pacote de exigências seja renovado. Enquanto o povo, a classe trabalhadora, é predestinado do alto a pagar a conta até que a morte os separe, oito banqueiros possuem mais riqueza do que a soma das rendas de metade da população do planeta, equivalente a 3,8 bilhões de pessoas. Por essa razão é que o poeta, tornando-se infiel à vontade de Mercado, questiona: qual crime maior, roubar um banco ou fundá-lo?
O regime militar-empresarial iniciado com o Golpe de 1964 agravou tanto o problema da dívida pública, que comissões parlamentares para investigação das razões da crise foram montadas a partir da década de 1980. Relatórios apontam graves indícios de irregularidades, ilegalidades, além de renúncia à soberania nacional. Revelações que deveriam levar à nulidade, à suspensão imediata do pagamento. Mas, ao invés disso, seguem abafadas, engolidas pela mídia, pelo poder judiciário, pelo congresso e por sucessivos governos que rezam na mesma cartilha.
A próxima graça ambicionada pelos bancos representa mais um grave crime contra o povo brasileiro: a destruição da Previdência Social. As ruas adiaram sua consumação, mas, se não cuidarmos, logo em breve ela estará em pauta novamente.
A sociedade, cujo deus é o mercado, existe embasada em um pecado estrutural, institucional: a desigualdade social. Atendendo à vontade do Pai, Jesus fez bem diferente. Encarnou o divino no amor ao próximo, transformou a economia em comunhão radical de bens e o poder em serviço, coletivizando as decisões. Em seu cotidiano, nem o sábado escapou de seu testemunho de organização popular nem a cerca o impediu de saciar quem tinha fome. Jesus priorizou a vida com a própria vida, a dignidade da pessoa humana, combatendo aquilo que se punha em sentido contrário.
Ensinou-nos que, para afirmar o Deus da vida, é preciso negar o deus Mercado. Não se pode servir a ambos. De modo que a luta pelo não pagamento da dívida pública ou mesmo por uma auditoria oficial, com participação popular e poder de deliberação, tornam-se, na atual conjuntura, bandeiras que, indiscutivelmente, contribuem para fazer dessa terra o céu de todos.
Mais informações: www.auditoriacidada.org.br 
*Publicado originalmente em Informativo Redentorista, fev/mar de 2018.
**Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

terça-feira, 13 de março de 2018

Um Galileu Suspeito nos Morros do Rio*


Por Thales Emmanuel**

- Mãe, por que há sempre muitos soldados em todo lugar que andamos? 
Jesus nasceu e cresceu numa sociedade militarizada, dominada por um império estrangeiro que impunha ao povo, além de altos tributos e total obediência, uma estrutura social baseada na concentração da propriedade privada da terra e de outros meios de produção. Os ricos da Palestina eram protegidos e, ao mesmo tempo, servidores dos interesses de Roma. Em nome de César, autodeterminavam-se o direito de barrar qualquer investimento social para, com o uso da espada, empobrecer, segregar e escravizar a maioria da população.
- Mãos na cabeça, galileu vagabundo! 
A Galileia, região onde Jesus nasceu e viveu boa parte de sua vida, era tão marginalizada pela classe dominante como os morros do Rio de Janeiro. Ainda jovem, Jesus teve que conviver com frequentes baculejos. Tinha os atributos que os soldados denominavam “perfil suspeito”. Era preto, pobre, vestia-se com simplicidade e falava em aramaico, língua do meio popular. Sua casa e as da vizinhança eram invadidas na madruga sem mandados judiciais. Pessoas arrancadas para interrogatório sumiam misteriosamente. Quando levaram Amarildo, habilidoso pedreiro da vila de Nazaré e seu colega de infância, Jesus chorou lágrimas de sangue no colo de uma mãe preocupada com o futuro. A chamada Pax Romana, a “paz sem voz”, período de relativa estabilidade do domínio imperial, se impunha pela violência contra a classe que produzia a riqueza que os grandes proprietários usurpavam, acumulavam e usavam para financiar as ações da repressão. “Aê, Pilatos, para assegurar o sucesso de nossa política de segurança pública, quero garantias para agir sem que surja uma nova Comissão da Verdade”, exigiu o interventor Herodes Villas Bôas. 
- Mãe, preciso partir! 
Quando as Unidades de Polícia Pacificadora de César se instalaram na Galileia e uma delas decapitou seu primo, João Batista, só por ele ter falado publicamente umas verdades, Jesus se indignou tanto, que decidiu sair de casa para se tornar militante na construção de uma nova sociedade. Uma em que não houvesse imperadores nem senhores, sem opressão, em que poder fosse sinônimo de serviço; uma sociedade que batizou com o nome de Reino de Deus. Enquanto a resistência e luta do povo lhe alimentavam com imprescindíveis exemplos, os soldados de Roma condenavam como bandidos e crucificavam todas as pessoas que de alguma forma se contrapunham às ordens de cima. A Mídia dos Altos Sacerdotes do Templo de Jerusalém fazia sua parte manipulando as mentes pela disseminação de ódio contra os que se colocavam a serviço da causa dos oprimidos. Quarenta dias antes da Páscoa do ano 32, todos os integrantes de um grupo cultural da Galileia, chamado Paraíso do Tuiuti, foram crucificados por criticarem, em suas alegorias e canções, a exploração que pesava sobre o povo. “No dia em que a Galileia descer e não for carnaval, ‘ordem e progresso’ terá outro sentido afinal/ Não tem órgão oficial nem governo nem liga, nem autoridade que compre essa briga, ninguém sabe a força desse pessoal/ É só a Galileia descer sem ser carnaval’”, expressava corajosamente a letra de uma das canções. 
O final dessa história todos nós conhecemos. Com a ressurreição, Jesus veta aos donos do poder a última palavra e o projeto do Reino se reinventa à cada época. Sinal de que essa história é uma história gestando um final. 
- Filho, eis-me aqui! 

*Publicado originalmente em Informativo Redentorista.
**Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).