segunda-feira, 25 de junho de 2018

“Ser campeão é um detalhe”*


Ditador Médici e o uso político da 
Seleção campeã de 1970


Por Thales Emmanuel**

Segundo estimativas, 3,4 bilhões de pessoas devem assistir aos jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na Rússia. Um recorde impressionante, apesar de nem todos sermos animais bolísticos e, diga-se de passagem, nem toda bola rolar em campos de futebol. Afastada das discussões sobre planos táticos e da especulação sobre que seleção levará a taça, há uma dimensão do futebol tão pouco comentada, que, para alguns, sequer pode ser considerada futebol. Trata-se do uso político e econômico deste que é o esporte mais popular do planeta. A chamada "paixão nacional" para brasileiros e brasileiras não cabe nas quatro linhas em que o debate esportivo geralmente é confinado.
Reza a lenda que ele, mais ou menos como conhecemos hoje, chegou em terras tupiniquins, via cidade de São Paulo, trazido da Inglaterra em finais de mil e oitocentos. Em suas primeiras décadas de Brasil, era praticado como esporte de elite por homens brancos ricos, como é o golfe atualmente. Isso acontecia ao mesmo tempo em que, nos terrenos baldios, as peladas organizadas pela juventude empobrecida, predominantemente negra, era reprimida pela polícia como ato de vagabundagem. A inclusão de atletas de raça e origem das classes oprimidas nas ligas oficiais se deu na marra, contra a discriminação explícita. Futebol era sinônimo de distinção social. A profissionalização veio somente na década de 1930, quando, enfim, a ginga e a resistência sobrevivente do morro misturaram-se definitivamente ao esporte, tornando-o arte.
Não tendo como não imitar a vida, o futebol, numa sociedade marcada pelo racismo, machismo e pela exploração e marginalização dos que operam sua edificação, seguiu controlado por homens brancos e ricos. O novo momento adequou-se às velhas estruturas de dominação. Não tardou a se perceber que a "alegria do povo" poderia também alegrar grandes negócios. Para Maurício Drumond, "a popularidade de esportes como o futebol se apresentava como um novo meio de levar a ideologia oficial às massas."
E foi assim, aproveitando-se da máxima de que "futebol não se discute" e da abertura crédula própria aos apaixonados, sua legião de torcedores, que o jogo dos onze contra onze foi dopado com interesses políticos e econômicos para atender a fins que não se revelam no placar eletrônico ao final da partida.
Há inúmeros casos conhecidos desse uso. O mais famoso talvez seja o da demissão do técnico João Saldanha, às vésperas da Copa de 70, período mais sangrento da ditadura militar-empresarial iniciada com o golpe de 1964. Após comandar a maior sequência de vitórias da história do escrete canarinho, João Sem Medo, como o treinador era conhecido, respondeu sem rodeios a uma tentativa de interferência do então presidente-ditador Emílio Garrastazu Médici sobre a lista de jogadores a serem convocados: "O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo o meu time." Saldanha, que aproveitava viagens internacionais para denunciar a repressão do regime, foi demitido logo em seguida e a campanha da Seleção no mundial, exaustivamente utilizada para cobrir de patriotismo e unidade nacional uma política subserviente ao capital internacional e massacradora de sua gente.
Os esquemas de corrupção descobertos na FIFA e na CBF, parcialmente revelados ("parcialmente" porque o futebol deixaria de ser "uma caixinha de surpresas" e perderia o encanto vindo do inusitado, fator este transformado em principal atrativo comercial, se toda sujeira fosse dita), e o uso da simbologia da Seleção em manifestações manipuladas por setores golpistas neoliberais são trapaças que ganharam destaque mais recentemente. Contudo, o maior peso da utilização político-econômica do esporte é sutil e cotidiano. Através principalmente da televisão se fabricam ídolos, que influenciam comportamentos e padrões de consumo. Sem nos darmos conta, já estamos torcendo pela multinacional patrocinadora e divulgando sua marca como fiéis militantes. A indústria do entretenimento não produz torcedores, mas consumidores alheios aos problemas sociais. Por ela, opostos se tornam irmãos inseparáveis, como álcool e esporte; e irmãos de uma mesma condição social viram "inimigos", como torcidas organizadas de jovens pobres em guerra contra jovens pobres de outras torcidas; ambos, mortos e feridos, sem notarem que são igualmente barrados no baile da elitização dos estádios, retrato de uma sociedade sem ingresso para os sem poder de consumo.
Assistindo ou praticando, o futebol pode nos proporcionar momentos de alegria em meio a uma vida sofrida. Como resistir ao encanto da dádiva poética torta e incontível de um Garrincha sem, ao mesmo tempo, ofender a Deus? Se a lógica do mercado nos idiotiza, a arte nos humaniza. Alegria e alienação não se misturam por obra da natureza, mas por força de interesses financeiros. Em Fortaleza-CE, uma das mais lindas lutas populares da última década aconteceu em plena Copa das Confederações, 2013, quando torcidas organizadas de Ceará, Fortaleza e Ferroviário se uniram a movimentos populares na avenida Dedé Brasil. Semanas atrás, por pressão internacional e de sua própria torcida, a Associação Argentina de Futebol teve que cancelar amistoso que realizaria com a seleção israelense, após as forças armadas desse país protagonizarem mais um sangrento massacre contra o povo palestino.
Futebol não muda o mundo. Mas ambos, futebol e mundo, mudam quando deixamos de ser passivos expectadores nessa bola gigante chamada Terra, que, aliás, ainda não deu seu último giro. Que o diga a Democracia Corintiana, para quem “ser campeão é um detalhe”.


*Originalmente publicado em Informativo Redentorista, Vice-Província de Fortaleza.
** Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).