Ditador Médici e o uso político da
Seleção campeã de 1970
Por Thales
Emmanuel**
Segundo estimativas, 3,4 bilhões de
pessoas devem assistir aos jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na
Rússia. Um recorde impressionante, apesar de nem todos sermos animais
bolísticos e, diga-se de passagem, nem toda bola rolar em campos de futebol.
Afastada das discussões sobre planos táticos e da especulação sobre que seleção
levará a taça, há uma dimensão do futebol tão pouco comentada, que, para
alguns, sequer pode ser considerada futebol. Trata-se do uso político e
econômico deste que é o esporte mais popular do planeta. A chamada "paixão
nacional" para brasileiros e brasileiras não cabe nas quatro linhas em que
o debate esportivo geralmente é confinado.
Reza a lenda que ele, mais ou menos
como conhecemos hoje, chegou em terras tupiniquins, via cidade de São Paulo,
trazido da Inglaterra em finais de mil e oitocentos. Em suas primeiras décadas
de Brasil, era praticado como esporte de elite por homens brancos ricos, como é
o golfe atualmente. Isso acontecia ao mesmo tempo em que, nos terrenos baldios,
as peladas organizadas pela juventude empobrecida, predominantemente negra, era
reprimida pela polícia como ato de vagabundagem. A inclusão de atletas de raça
e origem das classes oprimidas nas ligas oficiais se deu na marra, contra a
discriminação explícita. Futebol era sinônimo de distinção social. A
profissionalização veio somente na década de 1930, quando, enfim, a ginga e a
resistência sobrevivente do morro misturaram-se definitivamente ao esporte,
tornando-o arte.
Não tendo como não imitar a vida, o
futebol, numa sociedade marcada pelo racismo, machismo e pela exploração e
marginalização dos que operam sua edificação, seguiu controlado por homens
brancos e ricos. O novo momento adequou-se às velhas estruturas de dominação.
Não tardou a se perceber que a "alegria do povo" poderia também
alegrar grandes negócios. Para Maurício Drumond, "a popularidade de
esportes como o futebol se apresentava como um novo meio de levar a ideologia
oficial às massas."
E foi assim, aproveitando-se da
máxima de que "futebol não se discute" e da abertura crédula própria
aos apaixonados, sua legião de torcedores, que o jogo dos onze contra onze foi
dopado com interesses políticos e econômicos para atender a fins que não se
revelam no placar eletrônico ao final da partida.
Há inúmeros casos conhecidos desse
uso. O mais famoso talvez seja o da demissão do técnico João Saldanha, às
vésperas da Copa de 70, período mais sangrento da ditadura militar-empresarial
iniciada com o golpe de 1964. Após comandar a maior sequência de vitórias da
história do escrete canarinho, João Sem Medo, como o treinador era conhecido,
respondeu sem rodeios a uma tentativa de interferência do então
presidente-ditador Emílio Garrastazu Médici sobre a lista de jogadores a serem
convocados: "O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo o meu
time." Saldanha, que aproveitava viagens internacionais para denunciar a
repressão do regime, foi demitido logo em seguida e a campanha da Seleção no
mundial, exaustivamente utilizada para cobrir de patriotismo e unidade nacional
uma política subserviente ao capital internacional e massacradora de sua gente.
Os esquemas de corrupção
descobertos na FIFA e na CBF, parcialmente revelados ("parcialmente"
porque o futebol deixaria de ser "uma caixinha de surpresas" e
perderia o encanto vindo do inusitado, fator este transformado em principal
atrativo comercial, se toda sujeira fosse dita), e o uso da simbologia da
Seleção em manifestações manipuladas por setores golpistas neoliberais são trapaças
que ganharam destaque mais recentemente. Contudo, o maior peso da utilização
político-econômica do esporte é sutil e cotidiano. Através principalmente da
televisão se fabricam ídolos, que influenciam comportamentos e padrões de
consumo. Sem nos darmos conta, já estamos torcendo pela multinacional
patrocinadora e divulgando sua marca como fiéis militantes. A indústria do
entretenimento não produz torcedores, mas consumidores alheios aos problemas
sociais. Por ela, opostos se tornam irmãos inseparáveis, como álcool e esporte;
e irmãos de uma mesma condição social viram "inimigos", como torcidas
organizadas de jovens pobres em guerra contra jovens pobres de outras torcidas;
ambos, mortos e feridos, sem notarem que são igualmente barrados no baile da
elitização dos estádios, retrato de uma sociedade sem ingresso para os sem
poder de consumo.
Assistindo ou praticando, o futebol
pode nos proporcionar momentos de alegria em meio a uma vida sofrida. Como resistir
ao encanto da dádiva poética torta e incontível de um Garrincha sem, ao mesmo
tempo, ofender a Deus? Se a lógica do mercado nos idiotiza, a arte nos
humaniza. Alegria e alienação não se misturam por obra da natureza, mas por
força de interesses financeiros. Em Fortaleza-CE, uma das mais lindas lutas
populares da última década aconteceu em plena Copa das Confederações, 2013,
quando torcidas organizadas de Ceará, Fortaleza e Ferroviário se uniram a
movimentos populares na avenida Dedé Brasil. Semanas atrás, por pressão
internacional e de sua própria torcida, a Associação Argentina de Futebol teve
que cancelar amistoso que realizaria com a seleção israelense, após as forças
armadas desse país protagonizarem mais um sangrento massacre contra o povo
palestino.
Futebol não muda o mundo. Mas
ambos, futebol e mundo, mudam quando deixamos de ser passivos expectadores
nessa bola gigante chamada Terra, que, aliás, ainda não deu seu último giro.
Que o diga a Democracia Corintiana, para quem “ser campeão é um detalhe”.
*Originalmente publicado em Informativo Redentorista,
Vice-Província de Fortaleza.
** Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA)
e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).