terça-feira, 26 de novembro de 2013

UM PROBLEMA COM RAIZ



Por Pe Júlio Ferreira e Thales Emmanuel.*

Diz-se raiz do problema aquela que é causa primeira, sem a qual o problema deixa de existir.
Nosso problema começa há quinhentos e poucos anos, quando se iniciou a imposição, pela violência, a povos inteiros de um modelo de sociedade em que o direito de uns poucos tinha que se alastrar a todos os cantos na mesma medida em que o dever da maioria só poderia ser entoado na nota única da obediência.

As regras do jogo sempre foram claras:ou amém ou chibata. A maneira como o problema foi se desenvolvendo também não mudou muito de um lugar para outro: promessas de prosperidade futura, cooptação de lideranças, manobras que colocavam comunidades e povos contra eles mesmos, ameaças, migalhas compensatórias que não compensavam, cadeias, assassinatos, criminalização de toda forma de resistência etc. 

No território invadido, cercas foram inauguradas com pomposas festas para poucos convidados. Ao povo, sobrou um direito bondosamente concedido: aplaudir de longe os novos Descobrimentos.
Como nenhum Cabralse mantém sem concentrar para si o poder das armas, um Estado logo foi estruturado para dar vazão e razão às civilizadas ideias da classe dominante. Governos de fora, depois locais, imperiais ou republicanos, fascistas ou populistas, revezaram-se sucessivamente no disputado cargo de marionete do sistema.

Os anos passaram e a velha caravela, cheia das boas intenções, foi rebatizada com suntuoso nome: neodesenvolvimentismo, uma espécie de neoliberalismo caridoso. 

São barragens, eólicas, carciniculturas, hotéis-resorts, remoções de comunidades para dar passagem a grandes eventos, extermínio da juventude pobre, redução de direitos trabalhistas, transgênicos, agronegócios... É tanta da sigla se empenhando no prosseguimento de 1500que o povo tem ido insistente e massivamente às ruas protestar pela descolonização. A resistência se mantém viva!

O problema social brasileiro tem profunda raiz, é verdade, mas nada que o sopro do vento de um povo que vai às ruas e que luta não consiga arrancar. 

O poder popular é a chave para se resolver a complexa equação em que o Estado se instrumentaliza, a partir dos interesses de uns poucos, para oprimir a maioria da população. 

Que o próprio povo o coloque no banco dos réus e saia deste tribunal sentenciado a cumprir uma missão de vida em que os projetos dos grandes possam se restringir unicamente a uma história passada e cada vez mais remota.


 

* Pe Júlio Ferreira é missionário Redentorista e Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST). Ambos são membros da Organização Popular (OPA).

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que é vandalismo, alguém pode me ajudar a entender?




Há poucos dias acompanhei uma família que tentou, desesperadamente, evitar o óbito de sua mãe. Dona Eunice passou 20 dias "hospitalizada" no Hospital Municipal de Aracati, digo entre aspas porque não se trata de um hospital, mas de um posto de saúde precário. As vezes que estive ali para visitar dona Eunice vi de perto o sofrimento de muita gente, que como dona Eunice, acabam falecendo por falta de um adequado acompanhamento. Uma das vezes levaram dona Eunice para Fortaleza e de dentro da ambulância ela não saiu. Segundo relato da filha, a médica disse não ser necessário, e que só precisava dos exames. De Aracati à Fortaleza são 150Km. Quando providenciaram a transferência já era tarde. A saúde pública está sendo sucateada, pessoas morrem a míngua e não se fala em vandalismo.

A comunidade da Ilha São José é uma das comunidades de Aracati que vem sendo destruída pela carcinicultura. Ali existia carnaúbas, hoje não existe mais. Ali havia lagoas, hoje já não há mais. Na Ilha se vivia das plantações, hoje já não há terra para plantar. Tudo foi derrubado, aterrado... e por último estão tirando as pessoas, oferecendo casas em outro lugar. Assim também no Cumbe, no Cajueiro, na Timbaúba, no Canapum, no Morrinhos... Eles chegam depredando o meio ambiente, as pessoas, a vida e não são vândalos.

Antes da eólica e carcinicultura se apropriarem dos espaços da comunidade do Cumbe, as pessoas tinham livre acesso. Elas faziam parte do meio ambiente, interagiam. Eram mangue, sururu, carangueijo, dunas, lagos, pessoas felizes. Ai eles chegaram e se tornaram donos de tudo, colocando cercas, placas, proibições... Eles dividiram a comunidade, cercearam liberdades e não praticam vandalismo.

Aracati é tida como a segunda cidade depois de Fortaleza, com maior índice de drogas e prostituição infantil. Muitas vidas são ceifadas, principalmente de jovens. Mães que choram seus filhos e não são escutadas. Onde estão as políticas públicas para a juventude? O ensino de qualidade? Acessibilidade a cultura e ao lazer? O emprego? A comida na mesa? Roubam as vidas de nossos jovens e não são vândalos.

Multidões foram e continuam indo as ruas mostrar sua indignação, dizendo já não ser mais possível suportar o peso da desigualdade fruto do capitalismo, do lucro e do acúmulo. Os que gritam, cantam, dão o seu recado e vão embora são chamados de pacíficos. Aqueles que afrontam os poderes e apontam os causadores das feridas abertas são denominados de vândalos, são perseguidos e presos. O que é vandalismo? Alguém pode me ajudar a entender?

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Que venham os pés romeiros!



"Vem chegando o romeiro, vem chegando a romeira", chegando para fazer acontecer o 13º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Com o tema: Justiça e Profecia a Serviço da Vida e o lema: CEBs, Romeiras do Reino no Campo e na Cidade, o 13º Intereclesial acontece na cidade de Juazeiro do Norte, diocese do Crato, nos dias 07 a 11 de janeiro de 2014.

"Não deixe cair a profecia", esse foi o pedido de dom Helder antes de fazer sua páscoa. O 13º Intereclesial que começou há quatro anos atrás, tem a pretensão de fazer esse pedido de dom Helder ecoar em todos os cantos. As CEBs, Romeiras do Reino no Campo e na Cidade, querem continuar sendo fiéis ao sopro do Espírito, mesmo que para isso tenham que andar "com Jesus na contramão." 

Ao longo desses quatro anos houve a sensibilização, o aprofundamento e a vivência, em todas as CEBs do Brasil. O Intereclesial, segundo o compositor e cantor das CEBs, Zé Martins, é uma grande celebração do povo de Deus, um espaço para confrontar a nossa prática com a prática de Jesus, onde se vive a comunhão eclesial e a partilha, o ecumenismo e o diálogo com outras religiões e com outras culturas. O Interclesial é encontro para fortalecer as Comunidades Eclesiais de Base.

O primeiro encontro Intereclesial de CEBs foi realizado em Vitória (ES), em janeiro de 1975, ano em que o país mergulhou no terror patrocinado pela repressão do regime comandado pelo general Geisel. Teve como tema: "CEBs: Uma Igreja que Nasce do Povo pelo Espírito de Deus" e contou com a participação de 70 delegados, além de bispos e assessores. 

Realizado também em Vitória, em agosto de 1976, o segundo Intereclesial registrou a presença de 3 bispos latino-americanos, 13 bispos brasileiros e a participação de 100 delegados. Tendo como tema: CEBs: Igreja, Povo que Caminha", o encontro se voltou para o engajamento das Comunidades Eclesiais de Base nas lutas sociais. 
 
Em julho de 1978, nos dez anos de Medellin, João Pessoa, na Paraíba, sediou o terceiro Encontro Intereclesial de CEBs. Contou com 200 delegados, entre índios, evangélicos e latinos e discutiu o tema "CEBs: Igreja, Povo que se Liberta". A proximidade do fim da ditadura militar marcou o 4° Encontro. Realizado em abril de 1981, em Itaici (SP), teve como tema: "Igreja, Povo Oprimido que se Organiza para a Libertação" e contou com a participação de 280 delegados. 

Dois anos depois, em 1983, a cidade de Canindé (CE), famoso centro de romaria nordestino, onde são realizadas festas em homenagem a São Francisco de Assis, recebeu mais de 50o delegados para o 5° Intereclesial, com o tema: "CEBs: Povo Unido, Semente de uma Nova Sociedade". 

O sexto Intereclesial foi realizado após a ditadura militar (1986), em Trindade (GO), dois anos depois da campanha das "Diretas Já" e um ano após a eleição de Tancredo Neves, que marcou o início da Novo República. Com a participação de 1647 delegados, apresentou o tema: "CEBs: Povo de Deus em Busca da Terra Prometida". É durante a preparação do Interclesial de Trindade que nasce a ampliada nacional das CEBs.

No sétimo encontro, realizado em julho de 1989, na cidade de Duque de Caxias (RJ), uma das regiões mais pobres do País, estiveram presentes 2.550 delegados, entre representantes de 19 países latino-americanos e 12 Igrejas Evangélicas. O tema foi "CEBs: Povo de Deus na América Latina a Caminho da Libertação". Refletiu o importante momento que a sociedade brasileira vivia: eleições diretas para presidente da república, depois de 20 anos de silêncio. 

 Em Santa Maria (RS), setembro de 92, ano do 5° Centenário da invasão da América pelos europeus, e às vésperas do impeachement de Collor, aconteceu o oitavo encontro. Registrou a participação de 2.238 delegados, 88 representantes latino-americanos e 106 evangélicos. Teve como tema: "CEBs: Culturas Oprimidas e a Evangelização na América Latina". 

Realizado em São Luís (MA), o nono Intereclesial aconteceu em julho de 1997, contou com a participação de 2.700 pessoas que refletiram o tema: "CEBs: Vida e Esperança nas Massas". Ao final do encontro, os delegados escolheram a Diocese de Ilhéus, na Bahia, para sediar o 10° Encontro Intereclesial que aconteceu de 11 a 15 de julho do ano 2.000, contou com a participação  de 3.036 delegados. O tema do 10º intereclesial foi: CEBs: Povo de Deus, 2000 anos de caminhada. O encontro celebrou e avaliou os 500 anos de evangelização no Brasil e os 25 anos dos intereclesiais.

A cidade de Ipatinga acolheu de 19 a 23 de julho de 2005, o 11º intereclesial que teve como tema: CEBs, Espiritualidade Libertadora – Seguir Jesus no Compromisso com os Excluídos. Participaram deste intereclesial 3.806 delegados(as). De Ipatinga o trem rumou para o regional noroeste, cidade de Porto Velho - Rondônia, de 21 a 25 de Julho de 2009. O tema: CEBs: Ecologia e Missão - Do ventre da terra o grito que vem da Amazônia - guiou toda a preparação do intereclesial que contou com a participação de 3.010 delegados.


Esperando acolher os  3750 delegados, a cidade de Juazeiro oferece a sua espacialidade romeira para que aconteça o 13º Intereclesial. Que venham os pés romeiros! "Os pés romeiros são como lápis. Nós pobres, somos de poucas letras. Mas a gente também escreve com os pés. Só que prá ler essa escrita precisa de conhecer os chãos da vida e das estradas duras. E é preciso curtir o couro dos pés. Pezinhos de pele fina não deixam quase nada escrito nos caminhos da vida."




terça-feira, 11 de junho de 2013

Comunidade do Cumbe realiza oficina sobre cartografia social



O final de semana parece terminar.Mas para os que estiveram na comunidade do Cumbe ele é um recomeçar. Os dias não terminam para os que lutam incansavelmente por uma sociedade justa, igualitária e livre. E a comunidade do Cumbe sabe muito bem o que significa lutar e resistir. Embora pareça a luta do Davi contra o Golias, a comunidade não se deixa intimidar diante dos grandes projetos depredadores.

Uma oficina sobre cartografia social foi realizada nos dias 08 e 09, na comunidade, pelos estudantes de geografia da Universidade Federal do Ceará - UFC. Segundo João Joventino, da comunidade do Cumbe, essa oficina faz parte de uma ação conjunta na semana do meio ambiente.

"O objetivo da oficina, cartografia social, é oferecer a comunidade um instrumental de luta e de poder. O reconhecimento do território como lugar de realização, espaço coletivo e livre fortalece a luta da comunidade que, na maioria das vezes, se vê refém das injustiças ambientais", afirma Joventino.

Para o estudante de geografia da UFC, Rafael Valente, "a cartografia social é um contraponto da cartografia, que trabalha a partir de mapas temáticos. Os mapas temáticos acaba não visualizando o todo, favorecendo os empresários em detrimento à comunidade". A cartografia social, diz Valente, nasceu nos anos 90 e objetiva a ajudar as comunidades a conhecerem sua história e seu território. Elas se localizam e se defendem, conclui.

Em apoio solidário e participativo, várias entidades, além dos estudantes do departamento de geografia da UFC, estiveram no Cumbe, entre elas a OPA - Organização Popular de Aracati e o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Estudo, Panfletagem e Missa marcam o dia do trabalhador em Aracati

Poderia ser um simples 1º de maio, com as comemorações para o dia do trabalhador em Aracati, não fosse a ousadia da Organização Popular de Aracati - OPA. Pela manhã, às 8h00min, na Igreja dos Prazeres foi celebrada a Missa do Trabalhador. Com faixas, cartazes e bandeiras, os trabalhadores e trabalhadoras denunciaram as grandes empresas e grandes projetos que só visam o lucro, destruindo a vida, pessoas e meio ambiente. Iluminados pela palavra anunciaram que Deus é “o Deus dos pequenos”, “um Deus humano e sofrido”, “de mãos calejadas e de rosto curtido”.
Terminada a Missa saíram pelas ruas, como na terça-feira, 30, fazendo panfletagem contra a empresa que patrocina as olimpíadas do trabalhador em Aracati, a SYNGENTA. Segundo o panfleto distribuído pela OPA, a SYNGENTA, de origem Suiça, é uma das maiores empresas do mundo no ramo de agronegócio. Produz sementes transgênicas e agrotóxico. No Ceará, continua o panfleto, seu laboratório localiza-se no município de Aracati, mas especificamente na comunidade Cajazeiras.
Na semana que antecedeu ao dia do trabalhador, a OPA realizou vários outros eventos, como reflexão nas comunidades de base e nos colégios, esclarecendo sobre a ameaça transgênica, o uso de agrotóxico e, principalmente, sobre quem é a patrocinadora das olimpíadas do trabalhador de Aracati. “Atualmente o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo, com cerca de 4,5 litros de veneno por habitante”, diz o roteiro preparado pela OPA para o estudo.
Em Chicago, nos Estados Unidos, no ano de 1886, a classe trabalhadora começa uma série de mobilizações reivindicando melhorias nas condições de trabalho, entre elas a redução da jornada diária de treze para oito horas. Nasce aí o dia internacional do trabalho, como sendo o dia internacional de luta dos trabalhadores e trabalhadoras.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O padre, o sapato e a Eucaristia

Todo artigo tem um por que. Ele nasce de uma conversa, de uma situação, de uma leitura, de uma preocupação, etc. No caso deste, que começo a escrever agora, é fruto de uma conversa recente e de uma outra mais antiga. Digamos que ele já estava sendo concebido há algum tempo. E que agora chegou o momento de passar das idéias, do pensamento para o papel.  É algo que merece ser partilhado, creio eu.
Faço parte de uma geração de padres que nasceu com as Comunidades Eclesiais de Base. E que encontrou uma Congregação Religiosa aberta para os sinais dos tempos, capaz de fazer as leituras cabíveis e necessárias para a inserção do carisma e da espiritualidade para o hoje da história. Sou religioso, padre, na Congregação do Santíssimo Redentor.
Nas CEBs, na Congregação e no Instituto Pastoral do Ceará – ITEP, sempre debatemos, discutimos e entendemos a Eucaristia como sendo serviço, desprendimento, partilha, entrega da vida, livre e comprometida. Como canta Zé Vicente, “celebrar a eucaristia é também ser torturado, é ser perseguido e preso, é ser marginalizado, ser entregue aos tribunais, numa cruz prá ser pregado”.
Recentemente, estava pronto para celebrar a eucaristia quando fui indagado por um jovem, religioso, estudando para ser padre, se eu iria celebrar a eucaristia de tênis, pois segundo o professor de liturgia, isso é anti-litúrgico. O sapato, segundo ele, tem que ser preto e não pode ser tênis. Indagação como essa, já tinha feito a mim, anos atrás, um outro jovem, religioso, estudando para ser padre.
Gostaria de ser indagado e questionado pelos nossos jovens religiosos, estudando para serem padres ou não, por estar sendo displicente no compromisso com os mais pobres e abandonados, com os excluídos de nossa sociedade, com os atingidos pelos grandes projetos depredadores. Ficaria feliz, muito feliz, e até agradeceria, se fôssemos todos chamados a atenção, enquanto grupo, por estarmos sendo infiéis a causa do Reino, ao seguimento de Jesus, a espiritualidade e carismas afonsianos. Seria, para nós, um grande ensinamento.
No mundo eclesial em que vivemos hoje, inverteram-se as prioridades. O que menos importa mesmo é a Eucaristia. Os paramentos, as vestes litúrgicas, os sapatos pretos brilhosos são mais importantes e têm mais visibilidade do que o mestre que diz: “se eu não te lavar os pés, não terás parte comigo”. Prefiro continuar na contramão, como canta Airton de Maria. “Com Jesus na contramão eu vou, acolhendo os pequeninos do Reino que anunciou. Com Jesus na contramão eu vou, lutando contra o sistema excludente e opressor”. É esse, para mim, o verdadeiro sentido da Eucaristia.