Por Thales Emmanuel**
“Todos acreditam em Deus, porque Deus é aquilo que
colocamos em primeiro lugar.” As palavras do padre Albert Nolan nos conduzem a uma
inevitável e importante reflexão: Quem é Deus, para mim? Que deus governa a
sociedade em que vivemos? As perguntas aparecem separadas por questão puramente
metodológica, já que é impossível saber quem eu sou e, consequentemente, a
ideia que tenho do divino, separando-me do meio em que construo relações
sociais e que, ao mesmo tempo, sou construído por elas.
Se Deus é sinônimo de prioridade de vida, como sugere
Nolan, deduzimos então que as crenças, tanto individuais como sociais,
revelam-se mais pelo que se é experimentado, praticado, do que pelo que se é
falado. Assim, as respostas sobre “quem é Deus?” se encontram, para
o indivíduo, no seu fazer cotidiano; para a sociedade, na forma como organiza e
estrutura suas prioridades.
O deus que comanda a sociedade capitalista se chama
Mercado. Mercado é um deus que se manifesta à primeira vista pela total devoção
dos seres humanos ao mundo das coisas. Sua teologia é simples e fácil de
entender: quem possui bens, é gente de bem; quem não possui, nada é ou é sujeito
do mal. Quem tem mais propriedades é mais ungido do que os proprietários
menores e os sem propriedade são os escolhidos para servir, como
descartáveis, à penitência do trabalho assalariado. Isso quando há oferta de
emprego, algo cada vez mais raro, já que a tecnologia, enquadrada no rito
devocional que sacraliza a propriedade privada dos meios de produção, substitui
de forma acelerada o ser humano pela máquina. O espírito que rege a sobrevivência
dos sem emprego, deus Mercado batizou com o nome de “empreendedorismo”. E
o Estado, ao invés de promotor de direitos, revelou-se como sendo a força pela
qual o todo poderoso opera o milagre de fazer com que a maioria se submeta aos
interesses da minoria.
Os bancos assumem hoje em dia o papel de sumo sacerdote do
sistema. São os principais intermediários da relação entre Mercado e a
sociedade em geral. Definem critérios de desenvolvimento econômico,
políticas de Estado e acorrentam nações inteiras com o dogma da “dívida pública”. Quem ouse
questionar esse dogma, corre sérios riscos de excomunhão. Entra governo, sai
governo, e nada se fala, muito menos se faz, para auditar a dívida.
“Auditoria é um instrumento para investigação de dados e
documentos.” Uma maneira de saber quem contraiu a dívida, em que condições,
quem se beneficiou com ela, em que foram aplicados os recursos, que fatores a
fizeram crescer e o que há de fraudulento e de legítimo em todo o processo. No
Equador, uma auditoria oficial realizada pelo governo a partir de 2007 resultou
na anulação de 70% da dívida externa em títulos daquele país. No Brasil, o
governo golpista de Michel Temer oferece como sacrifício os direitos da classe
trabalhadora e do povo mais empobrecido em honra ao juramento feito no altar da
bolsa de valores. Aproximadamente 40% do Orçamento Geral da União atualmente
é revertido para pagamentos de juros e amortização. Para termos noção do
tamanho da violação, em 2011, menos de 0,01% do Orçamento da União
foi “investido” na área de habitação. Valor este reduzido à nada com
a recente imposição golpista do congelamento por vinte
anos em investimentos sociais. E o Brasil com suas 33 milhões
de pessoas sem teto!
Já se perguntou algum dia quantas vidas são sacrificadas em adoração
de Mercado? Esse deus não se comove ante o genocídio planejado.
Ele inventou a culpa foi para os endividados, não para
os credores.
Estudos estimam que a dívida pública da América Latina já
foi paga integralmente mais de seis vezes. No entanto, na maioria dos
países ela continua aumentando a passos acelerados. No Brasil, em
2011 seu estoque alcançou o montante de 3.228.167.962.882,24 (3 trilhões, 228
bilhões, 167 milhões, 962 mil, 882 reais e 24 centavos). Em 2017, a cifra
alcançou os 5.580.745.791.677,64 (5 trilhões, 580
bilhões, 745 milhões, 791 mil, 677 reais e 64 centavos), segundo dados do Banco Central, citados pela iniciativa
popular Auditoria Cidadã da Dívida.
A grande mídia, responsável por espalhar a boa nova de
Mercado, explica o fenômeno do “quanto mais se paga, mais se deve” como
sendo mistério sobrenatural ou obra da imperfeição humana. Expiação
necessária à salvação do desenvolvimento do modelo econômico. No
entanto, o fato é bem outro. Nada de mistério ou incapacidade
administrativa! Trata-se é de uma perversa lógica de concentração de
riquezas.
Os bancos não emprestam com a finalidade de um dia verem as
dívidas quitadas. Com as exigências que fazem como condição a concessão do
recurso, sentenciam o que deve ser o grosso da política econômica do país
recebedor. Alteram leis, definem o destino prioritário da aplicação do que sai
dos cofres públicos, interferem na regulamentação do sistema eleitoral e por aí
vai. A decisão governamental pela privatização do patrimônio público, por
exemplo, passa pelo aval e pela ordem dos bancos, que ficam com o montante
apurado, como manda a lei. A dívida não existe para ser quitada, mas para ser
paga uma, duas, setenta vezes sete vezes.
Quem acredita na dívida eterna sabe que ela quebrará
quantas vezes for possível a economia do país devedor, forçando-o
recorrentemente a contrair novos empréstimos, que não aparecerão antes que os votos
de total obediência ao mais recente pacote de exigências seja renovado. Enquanto
o povo, a classe trabalhadora, é predestinado do alto a pagar a conta até que a
morte os separe, oito banqueiros possuem mais riqueza do que a soma das rendas
de metade da população do planeta, equivalente a 3,8 bilhões de pessoas. Por
essa razão é que o poeta, tornando-se infiel à vontade de Mercado, questiona:
qual crime maior, roubar um banco ou fundá-lo?
O regime militar-empresarial iniciado com o Golpe de 1964
agravou tanto o problema da dívida pública, que comissões parlamentares para
investigação das razões da crise foram montadas a partir da década de 1980.
Relatórios apontam graves indícios de irregularidades, ilegalidades, além de
renúncia à soberania nacional. Revelações que deveriam levar à nulidade, à
suspensão imediata do pagamento. Mas, ao invés disso, seguem abafadas,
engolidas pela mídia, pelo poder judiciário, pelo congresso e por sucessivos governos
que rezam na mesma cartilha.
A próxima graça ambicionada pelos bancos representa mais um
grave crime contra o povo brasileiro: a destruição da Previdência Social. As
ruas adiaram sua consumação, mas, se não cuidarmos, logo em breve ela estará em
pauta novamente.
A sociedade, cujo deus é o mercado, existe embasada em um
pecado estrutural, institucional: a desigualdade social. Atendendo à vontade do
Pai, Jesus fez bem diferente. Encarnou o divino no amor ao próximo, transformou
a economia em comunhão radical de bens e o poder em serviço, coletivizando as
decisões. Em seu cotidiano, nem o sábado escapou de seu testemunho de organização
popular nem a cerca o impediu de saciar quem tinha fome. Jesus priorizou a vida
com a própria vida, a dignidade da pessoa humana, combatendo aquilo que se
punha em sentido contrário.
Ensinou-nos que, para afirmar o Deus da vida, é preciso
negar o deus Mercado. Não se pode servir a ambos. De modo que a luta pelo não
pagamento da dívida pública ou mesmo por uma auditoria oficial, com
participação popular e poder de deliberação, tornam-se, na atual conjuntura,
bandeiras que, indiscutivelmente, contribuem para fazer dessa terra o céu de
todos.
Mais informações: www.auditoriacidada.org.br
*Publicado
originalmente em Informativo Redentorista, fev/mar de 2018.
**Thales
Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista
Brasileiro (PCB).