segunda-feira, 21 de novembro de 2016

GENTILÂNDIA


Eliton Meneses*


Normalmente vivo por cá, espremido nesse canto de praça, como Deus tem permitido. Fui despejado do quarto onde morava quando as coisas pioraram e deixei atrasar o aluguel. A mulher não aguentou essa minha vida. Ganhou o mundo com os meninos. Nunca mais tive notícias deles. Não sinto mais saudade. Nessa vida a gente se acostuma com tudo. Essa minha vida é difícil de seguir. Arrumei um carrinho de reciclagem, um colchão velho, umas caixas de papelão, um cobertor, um prato e uma colher e me estabeleci nesta praça. A polícia às vezes aparece, faz uma vistoria, mas quando encontra alguma coisa digo que é para o consumo próprio e acabam me deixando em paz. A venda é muito pouca, a moçada da universidade não tem grana. Na sexta à noite, a galera entendida se reúne na praça e melhora um pouco o movimento. Afora isso, tenho que complementar o lucro escasso com a reciclagem e um tempo pastorando carros.

A senhora idosa às vezes me traz um prato de comida, uns estudantes me dão um chocolate, um pessoal me traz uma camisa de partido...; vou assim tocando a vida, observando o movimento da praça. De manhã cedo chega a turma da caminhada, no fim de tarde a turma da academia da praça, no sábado os africanos jogam na quadra... Terça e quinta, sempre antes das seis, o pai e o menino de uns sete anos chegam para jogar. Penso em como andarão os meus. Admito que cometi muitos erros nessa vida. Quando quis me corrigir já era tarde. Não sei se tenho o que mereço. O certo é que as penas nunca correspondem às culpas.

Vejo o olhar indiferente dos caminhantes, a cara de nojo de um jovem gordo, o desdém do dono da banca de revista... Quando Amanda aparece à noite, negocio meia hora com ela. Alguém disse que este país não pode dar certo porque, dentre outras coisas, puta se apaixona e traficante se vicia. Amanda, coitada, de tão viciada, mal se sustenta em pé. Também nunca me deu sequer um desconto pelos muitos galanteios que lhe faço. Quanto aos traficantes, ao menos os da praça, de fato, não apuram nem para sustentar o vício.

Ando decrépito, sujo, maltrapilho e com poucos dentes. Os dois únicos amigos que me visitam são doidos varridos. Roberto, doido de nascença, e Nélson, enlouquecido pela pedra. Roberto há poucos dias tentou afugentar, com um porrete, um casal lésbico que se beijava na praça, mas acabou no hospital depois de uma pedrada nas costas... Nelson fugiu de um abrigo ainda criança e resolveu morar nos arredores da praça. Diz que ficou perturbado depois de uma surra da polícia. Tem alguns intervalos de lucidez, vive da caridade alheia, dorme no jardim da casa do Roberto e não furta nada de ninguém.

O dono da banca não tem vida. Fica de domingo a domingo no batente. Abre cedo e fecha tarde. Dizem que possui várias casas alugadas. Nunca me deu um cigarro. Não queria a vida do dono da barraca. A turma que dorme na praça consegue ser mais feliz. Não precisamos de muita coisa para viver. O passado não se muda. No futuro talvez reúna forças para uma mudança. O dono da barraca me recrimina porque não sou igual a ele. Roberto diz sempre que há tempo de plantar e há tempo de colher. Nélson costuma dizer que não preciso mudar, porque em time que está ganhando não se mexe.

* Eliton Meneses é poeta e defensor público no estado do Ceará.

sábado, 12 de novembro de 2016

“Fora, Temer!” e muito mais: manifestação popular fecha BR 304 por mais de 8 horas


Por Thales Emmanuel*

Ontem, 11 de novembro, em consonância com a luta nacional organizada por setores da classe trabalhadora, aproximadamente 1000 pessoas fecharam por mais de 8 horas o trânsito de veículos na BR 304, nas imediações do km 43, Aracati-CE.
O protesto, que começou por volta das 7 horas da manhã, contra a retirada de direitos promovida pelo governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB), tinha também outras reivindicações, voltadas principalmente para garantia do acesso à água, à terra e por soluções para os impactos causados pela obra de duplicação de trecho da citada rodovia.
Em torno da Organização Popular (OPA), participaram da mobilização lutadores e lutadoras de vários municípios da região, do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST), da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), do Sindicato dos Servidores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (SINDSIFCE) e de comunidades, rurais e urbanas, quilombolas, operários, professores/as e estudantes.
Uma audiência de negociação foi agendada com o DNIT, mas as pautas relacionadas ao governo estadual não obtiveram resposta. O silêncio do governador Camilo Santana (PT) revoltou a população:
“O que é preciso fazer mais para que sejamos escutados? (Suspiro) Seja lá o que for, faremos. Somos atingidos por problemas sérios aqui. A falta de água é um deles. Falta água para o povo, mas sobra para as fazendas de camarão, que estão poluindo tudo. E o governador, nada responde?! Para que serve um governante? Para quem trabalha? Também tem outras questões, como a da estrada, do cruzamento da CE com a BR. Queremos uma solução. Estão querendo acabar com o nosso histórico acesso.”, revelou, indignada, dona Fátima, moradora da Vila São José.       
No que diz respeito à dimensão nacional, a indignação não era menor:
“Fora, Temer! Pelo Poder Popular! Precisamos reconstruir o Brasil, necessitamos de outro modelo econômico, de outra política, precisamos de participação popular real, direta. Essa não é somente uma mobilização contra o autoritarismo desse governo golpista e seus parceiros. Esta é também uma luta por um projeto alternativo de sociedade. Essa mudança não virá de cima, mas de baixo, através de muito enfrentamento e organização.”, declarou Francisco Augusto, jovem manifestante.
Os/As participantes garantem se manter mobilizados/as até alcançarem os objetivos.

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A questão agrária e Florestan Fernandes


Por Thales Emmanuel*
A sociedade brasileira foi fundada em um processo violento de colonização. A implantação do modelo agroexportador conhecido como plantagem monoculturou a vida por aqui. A biodiversidade da floresta, a florestidade dos povos nativos, foi invadida pelas cercas sem alma das sesmarias. E assim se ergueu o Estado: Made in Europe, ora pois!
O capitalismo nascente criou e concentrou a propriedade, parto cesárea da política monoculturada que se instalou como única política aceitável. A mão que segurou o bisturi e degolou cabeças que resistiam, também assinou a Lei de Terras de 1850, ratificação da pilantragem real. A maior grilagem da história do Brasil embasou de garantias o racismo estrutural. A Abolição não veio sem luta, nem a Lei Áurea sem o aprisionamento prévio da terra. Exilada no morro, a África observa ao longe o continente inacessível que levantara.  
“Quem descobriu o Brasil?”, indaga o rádio, o livro, responde a palmatória, insistentemente. Uma décima quarta caravela desembarcou pelas páginas da língua oficial. A nação cresce devota de seu descobridor. Cuidado com a resposta, ela pode mostrar que a pergunta não faz, absolutamente, nenhum sentido. Maldita seja toda história cujo português é bem dizido!
“Essa terra tem dono!”, “Reforma Agrária: na lei ou na marra!”, a dominação jamais imperou sobre o silêncio. Em 1964, o povo gritou 64 vezes 64 pelas Reformas de Base; Cabral então reapareceu em tanques de guerra: “Golpe à vista!”. “Ressurge a Democracia”, declarou o editorial de O Globo em 2 de abril daquele ano. A espada e a cruz. US portugueses já não falavam português. Tivesse escrito “Democracia” com “d” pequeno, quem sabe não pertencesse ela à maioria.
Além de golpes de Estado, a concentração da propriedade da terra determinou a organização da produção. A tecnologia da Segunda Guerra atracou com o discurso do fim da fome, uma “Revolução Verde”, mas trouxe mesmo o envenenamento da vida. Na academia, nos centros de pesquisa, o natural tornou-se arcaico e os agrotóxicos foram laureados como símbolos da modernidade, da única modernidade bem-vinda ao campo brasileiro. O homo sapiens existe há 200 mil anos, mas foi somente a partir da segunda metade do século XX que o herbicida passou a estar na sua mesa.   
De lá até hoje, a “Revolução Verde” – verde-dólar –, em suas distintas fases, aumentou às alturas o lucro de banqueiros e industriais, as despesas do Estado – que é quem a financia –, o número de más-formações congênitas, o de mortes matadas pelos velhos e novos tipos de cânceres que vão sendo fabricados em fusão com a química-farmacêutica; a “Revolução Verde” multiplicou a fome no mundo, batendo recorde histórico.
No campo e na cidade, o Brasil foi formado por povos invadidos, despejados, retirantes-retirados, por povos que resistem ao “Descobrimento” ainda hoje.
Em 04 de novembro último, em Guararema-SP, a Polícia Militar, articulada com a Civil, invade a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), vinculada ao Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST). A PM dispara armas de fogo com munição letal. Como em 1500, nenhum mandado judicial é apresentado. Os capitães do mato se machucam ao pular o muro e depois agridem o bibliotecário da Escola, um senhor de idade, portador de mal de Parkinson, que tem seu rosto prensado contra o chão e uma costela quebrada. O jovem que alerta os algozes sobre as doenças da vítima é detido por “desacato à autoridade”.  
Nas mídias alternativas foi grande a repercussão. Tudo filmado! Muita gente chega em apoio ao MST. A Rede Globo, então, se vê obrigada a noticiar o fato. No programa do Fantástico do domingo seguinte, a emissora criminaliza a luta pela Reforma Agrária, dando a entender que o MST é formado por quadrilhas de bandidos, pretendendo justificar e banalizar a repressão do Estado e preparar terreno para outras violações. O alvo, na verdade, é a classe trabalhadora. É preciso quebrar a resistência dos de baixo. Típico de uma empresa que nasceu para criar ou adequar a interpretação dos fatos à ânsia de lucro de seus patrocinadores.
Aliás, vem das gerências de Marketing e de Comunicação dos Marinho a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”, tentativa de alavancar o ideário neocolonial do agronegócio.
Como diria o professor Florestan Fernandes: “Não se deixar cooptar, não se deixar esmagar, lutar sempre!”. Há mais de 500 anos, todas as possibilidades dos “descobertos” de se descobrirem passam por essas três premissas.


*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).