segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A questão agrária e Florestan Fernandes


Por Thales Emmanuel*
A sociedade brasileira foi fundada em um processo violento de colonização. A implantação do modelo agroexportador conhecido como plantagem monoculturou a vida por aqui. A biodiversidade da floresta, a florestidade dos povos nativos, foi invadida pelas cercas sem alma das sesmarias. E assim se ergueu o Estado: Made in Europe, ora pois!
O capitalismo nascente criou e concentrou a propriedade, parto cesárea da política monoculturada que se instalou como única política aceitável. A mão que segurou o bisturi e degolou cabeças que resistiam, também assinou a Lei de Terras de 1850, ratificação da pilantragem real. A maior grilagem da história do Brasil embasou de garantias o racismo estrutural. A Abolição não veio sem luta, nem a Lei Áurea sem o aprisionamento prévio da terra. Exilada no morro, a África observa ao longe o continente inacessível que levantara.  
“Quem descobriu o Brasil?”, indaga o rádio, o livro, responde a palmatória, insistentemente. Uma décima quarta caravela desembarcou pelas páginas da língua oficial. A nação cresce devota de seu descobridor. Cuidado com a resposta, ela pode mostrar que a pergunta não faz, absolutamente, nenhum sentido. Maldita seja toda história cujo português é bem dizido!
“Essa terra tem dono!”, “Reforma Agrária: na lei ou na marra!”, a dominação jamais imperou sobre o silêncio. Em 1964, o povo gritou 64 vezes 64 pelas Reformas de Base; Cabral então reapareceu em tanques de guerra: “Golpe à vista!”. “Ressurge a Democracia”, declarou o editorial de O Globo em 2 de abril daquele ano. A espada e a cruz. US portugueses já não falavam português. Tivesse escrito “Democracia” com “d” pequeno, quem sabe não pertencesse ela à maioria.
Além de golpes de Estado, a concentração da propriedade da terra determinou a organização da produção. A tecnologia da Segunda Guerra atracou com o discurso do fim da fome, uma “Revolução Verde”, mas trouxe mesmo o envenenamento da vida. Na academia, nos centros de pesquisa, o natural tornou-se arcaico e os agrotóxicos foram laureados como símbolos da modernidade, da única modernidade bem-vinda ao campo brasileiro. O homo sapiens existe há 200 mil anos, mas foi somente a partir da segunda metade do século XX que o herbicida passou a estar na sua mesa.   
De lá até hoje, a “Revolução Verde” – verde-dólar –, em suas distintas fases, aumentou às alturas o lucro de banqueiros e industriais, as despesas do Estado – que é quem a financia –, o número de más-formações congênitas, o de mortes matadas pelos velhos e novos tipos de cânceres que vão sendo fabricados em fusão com a química-farmacêutica; a “Revolução Verde” multiplicou a fome no mundo, batendo recorde histórico.
No campo e na cidade, o Brasil foi formado por povos invadidos, despejados, retirantes-retirados, por povos que resistem ao “Descobrimento” ainda hoje.
Em 04 de novembro último, em Guararema-SP, a Polícia Militar, articulada com a Civil, invade a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), vinculada ao Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST). A PM dispara armas de fogo com munição letal. Como em 1500, nenhum mandado judicial é apresentado. Os capitães do mato se machucam ao pular o muro e depois agridem o bibliotecário da Escola, um senhor de idade, portador de mal de Parkinson, que tem seu rosto prensado contra o chão e uma costela quebrada. O jovem que alerta os algozes sobre as doenças da vítima é detido por “desacato à autoridade”.  
Nas mídias alternativas foi grande a repercussão. Tudo filmado! Muita gente chega em apoio ao MST. A Rede Globo, então, se vê obrigada a noticiar o fato. No programa do Fantástico do domingo seguinte, a emissora criminaliza a luta pela Reforma Agrária, dando a entender que o MST é formado por quadrilhas de bandidos, pretendendo justificar e banalizar a repressão do Estado e preparar terreno para outras violações. O alvo, na verdade, é a classe trabalhadora. É preciso quebrar a resistência dos de baixo. Típico de uma empresa que nasceu para criar ou adequar a interpretação dos fatos à ânsia de lucro de seus patrocinadores.
Aliás, vem das gerências de Marketing e de Comunicação dos Marinho a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”, tentativa de alavancar o ideário neocolonial do agronegócio.
Como diria o professor Florestan Fernandes: “Não se deixar cooptar, não se deixar esmagar, lutar sempre!”. Há mais de 500 anos, todas as possibilidades dos “descobertos” de se descobrirem passam por essas três premissas.


*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

Um comentário:

  1. Poxa, como com tão poucas vc conseguiu me desentalar. Boa reflexão. Espero que esse texto viralize por todo o universo.

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