sexta-feira, 26 de maio de 2017

Os Dez Mandamentos do Capitalismo

Após séculos caminhando pelo deserto, avistou ao longe o que parecia uma civilização.
“Será a ‘terra prometida’?”, perguntou.
Em resposta, como forma de explicar ao peregrino o mundo que estava prestes a conhecer, entregou-lhe Deus uma tábua e, em seguida, preveniu-o:
“Eis o capitalismo. Prepara-te!”

Os Dez Mandamentos do Capitalismo
1° Adorarás o dinheiro e o amarás sobre todas as pessoas – no capitalismo, tudo vai sendo transformado em mercadoria. As pessoas passam a valer o que possuem. Direitos básicos, conquistados com a luta do povo - como saúde, educação e moradia -, são transformados em ofertas de mercado, acessíveis ou inacessíveis conforme o tamanho do bolso. Privatização é o nome dado ao privilégio conferido a uma minoria para lucrar com a negação de direitos da maioria. O dinheiro representa a mercadoria universal, a qual todas as demais devem reverência.
2° Explorarás o teu próximo como nunca farias a ti mesmo – como sabe, na Bíblia, a expulsão do paraíso veio junto com a profecia: “com o suor do teu rosto comerás o teu pão”. Disse isso para Adão e Eva após se alimentarem do fruto do conhecimento. Mas o troço não funcionou como previ. No capitalismo, suor e pão se encontram apartados pela propriedade privada dos meios capazes de transformar uma coisa na outra (as fábricas, por exemplo, não pertencem à coletividade social de quem trabalha, mas a uma pessoa apenas ou a um grupo reduzido de pessoas). Confesso pra você: o problema só pode ser resolvido de duas maneiras: ou se muda a profecia (“com o suor alheio te esbanjarás de pão, pão que não produziste”, por exemplo) ou se muda o modo de produção.
3° Não falarás em luta de classes em vão – os meios de comunicação são controlados por uma minoria muito rica e lhe lembrarão diariamente que todas as pessoas são iguais perante a lei, perante Mim e perante a seleção de futebol. Omitirão que pobres são empobrecidos justamente para que ricos sigam cada vez mais enriquecidos. Em consequência, lidam com o povo como se fossem números, consumidores, telespectadores, eleitores. Assim o iguala pelo menos na aparência. A morte e a caridade são apresentadas como provas cabais dessa suposta homogênea homossapiência. Diante das dificuldades, pedem aos pobres paciência, mansidão. Dizem para esperar sua vez, que está chegando. Para essa cambada de hipócritas, não houve luta de classes entre o povo hebreu escravizado e as forças do faraó. E o que teria ocorrido, então? Moisés, por acaso vocês tiraram férias e foram passear nos Lençóis Maranhenses?
4° Honrarás os padrões – os valores e normas da sociedade burguesa (outro nome para capitalismo) se impõem à diversidade humana de forma colonizadora. Isto significa que a dominação de classe se reproduz e se sustenta pela difusão de modelos que servem à marginalização de tudo o que não lhe é igual, uma espécie de segregação integrada. Os traços físicos, o jeito de expressar os sentimentos, a orientação sexual e afetiva, o gênero, o protótipo de família, a cor da pele, a oralidade, a vestimenta, a maneira de caminhar; enfim, as diferenças não são celebradas pelo capital, mas perseguidas, enquadradas para que não se constituam efetivamente como diferenças. O pobre é aceito quando dócil; o negro, quando embranquece o comportamento; o gay, quando reservado. O projeto do capital pretende tudo à sua imagem e semelhança.
5° Não matarás se não for com o aval do lucro – aproximadamente 1000 bases militares instaladas em todo o planeta, mais de trilhão de dólares gastos por ano em guerras, maior população carcerária do mundo... Os números vindos de um país chamado Estados Unidos demonstram que o capital se sustenta pelo uso contínuo da violência. No Brasil, os donos do agronegócio assassinam com armas de fogo e com agrotóxico diariamente, mas, ao invés de punição, recebem é mais incentivo do Estado (financiamento, isenção de impostos, infraestrutura). Sem justiça não há paz.
6° A política não cometerás adultério contra a economia – o casamento da economia com a política é para toda eternidade. Quanto mais concentrada é a riqueza, mais concentrada é a interferência sobre a política. Lembra dos faraós? Pois é, os de hoje em dia possuem muito mais poderes. Ao contrário do que uma caixinha luminosa apelidada de televisão quer fazer crer, o pecado original dos problemas sociais não é o caixa 2, mas o caixa 1. A existência e legitimidade do caixa 1 é quem privatiza e autoriza a privatização da política por parte dos mais ricos. Não teria caixa 2 se não houvesse caixa 1. Lembre-se: a burguesia não domina porque tem maioria; ela tem maioria porque domina.
7° Não pouparás a natureza – vai se assustar quando vir o que fizeram com o paraíso. Como, no capitalismo, a produção é voltada para o lucro, necessidades artificiais são criadas para dar voracidade ao consumo. Por sua vez, o consumismo torna a produção sedenta de mais produção. As empresas concorrem para ver quem produz mais em menos tempo. A que conseguir, toma o mercado da outra. Criei a natureza com poder de regeneração infinito, pensando na eternidade da criação, mas a velocidade do ciclo de destruição capitalista é tão insana, que a Mãe Terra não tem conseguido acompanhar a reposição necessária da vida. Para desviar o foco das causas estruturais, os donos do poder responsabilizam o indivíduo com campanhas que convocam para um suposto “consumo consciente”. Puro fermento de saduceu! Não há reciclagem que dê jeito ao sistema capitalista. 
8° Não deixarás de levantar falso testemunho – só há duas forças capazes de alterar o curso dessa história, e a primeira está impossibilitada de fazê-lo. Prometi a Noé que não me meteria mais na vida humana, ao menos não tão diretamente. A segunda força, na verdade a única, que pode assumir essa missão, é a união e luta do povo oprimido, empobrecido, a classe trabalhadora, explorada, como queira chamar. A coisa só muda se essa gente fizer como vocês fizeram no Egito. A questão é que não há mais para onde fugir. Daí o medo dos poderosos. Eles sabem que um novo Êxodo representaria o fim de todos os tronos e de toda escravidão. E é justamente por esse motivo que utilizam seus potentes meios de comunicação para espalhar mentiras contra os que lutam. É uma maneira de jogar povo contra povo, de dividir para governar.
9° Não desejarás outra sociedade – o individualismo, base competitiva do comportamento predominante no capitalismo, é usado para inculcar saídas enganosas nas pessoas. Falsos profetas falam de ascensões egoístas e de um céu que só existirá depois da morte. E tudo em meu nome. Haja onipaciência! O sonho do consumismo será propagandeado como único sonho possível. Assim, envelhecem a juventude antes que esta se torne um risco ao sistema. Envelhecer é esvaziar-se de utopia. Contra o não-poder de consumo dos bairros populares, usam o chicote. Pobres de farda são utilizados para dispersar permanentemente pobres não fardados. Os de cima querem que a política seja encarada como arte do possível – tentar melhorar o que está posto, não superá-lo –, isso para que não se extrapole os limites de sua dominação. E o fazem cultuando a indiferença para com a dor do próximo, da próxima. É como disse certa vez uma aguerrida apóstola: “socialismo ou barbárie.” “Socialismo” é como algumas pessoas nesse mundo se referem à proposta do Reino.
10° Não violarás nenhum dos mandamentos – este é para dizer que muitas mudanças podem ocorrer na sociedade, mas, sem mexer radicalmente nos mandamentos, esta permanecerá capitalismo. E permanecer capitalismo significa que paz e prosperidade serão algo passageiro, localizado e restrito a alguns setores sociais. Uma paz doentia, porque se ergue da guerra contra a maioria. Uma prosperidade de privilégio e espiritualmente supérflua, visto que se faz à custa da mais ampla miséria já produzida. Apenas ¼ da população do planeta consegue acessar a felicidade disseminada pela propaganda comercial, e só com altas doses de anestésico. O capitalismo empurra a humanidade para o abismo. Na frente vão os pobres, negros, mulheres e homossexuais. Este sistema não está em crise. Ele é a própria crise. 

“Mas, Senhor, e a terra que jorra leite e mel?”
“Está aí a sua frente. Salomão nunca esbanjou tanta fartura e Lázaro jamais experimentou tamanha miséria”, respondeu Deus.
“E agora, o que faço para ser-Lhe fiel?”, investiu novamente o homem.
“Desobedeça, Moisés. Desobedeça.”



Por Thales Emmanuel, militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

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