Nesta
e na próxima edição trataremos do tema “Eleições”, não da forma como comumente
nos é apresentado, das candidaturas para o eleitorado. Acreditamos que esse
jeito de discutir política não politiza. Isso porque as eleições se encontram
dentro de um contexto mais amplo, de luta de classes, opressores e oprimidos, numa
sociedade cuja lógica de funcionamento gera cada vez mais desigualdades e onde
quem tem, elege, e quem não tem, quando é permitido, só vota.
Agora
problematizaremos a questão de uma maneira geral, que servirá de base para
entrarmos mais detidamente nas eleições 2018, tema da próxima edição. De
antemão, para quem quer se inteirar mais, recomendamos a leitura de “Um raio-X
na democracia”, reflexão publicada no número VIII do Informativo Redentorista e atualmente disponível no blog
“Cebs Comunica”.
Já
se perguntou qual a quantidade de pessoas que invalidam o voto à cada eleição?
Os registros oficiais contabilizam uma crescente desde 1989, quando reconquistamos
o direito de votar diretamente para presidente da república. Nas eleições de
2016, nulos, brancos e abstenções chegaram a superar a votação do primeiro ou
do segundo colocado em 21 das 26 capitais estaduais em todo o país. Se
contarmos o chamado voto de protesto, o por cabresto, o votar por votar, o
atendimento ao pedido do amigo, o voto na celebridade, o voto de quem “não quer
perder” o voto, o do candidato com mais tempo de televisão, nos cartazes e nos
carros de som, o voto comprado, o no bonitão ou na bonitona, o do santinho da
boca de urna e por aí vai, não seria de espantar se nos deparássemos com uma
invalidação beirando os 70 ou 80%.
O
que esses números nos dizem? E, melhor, o que faremos com o recado dado? Já que
“invalidação” não é bem a palavra correta, uma vez que alguma mensagem é
transmitida quando dona Raimunda aperta o botãozinho da urna eletrônica e diz:
“Pronto! Perdi meu valor."
Há
entidades que trabalham em prol do voto "consciente". Pelo visto não
tem surtido muito efeito. Prova de que boa vontade somente não é suficiente. Outros
defendem o voto facultativo. Como se essa medida facultasse também à dona
Raimunda perder ou manter seu valor. Quem vê aí uma saída para a crise de
representatividade talvez esteja esquecendo que os mais ricos, que criam a
miséria, bancarão ônibus e merenda pros mais pobres irem votar em seus
candidatos. E há quem inverta os papéis entre algoz e vítima: "Cada povo
tem o governo que merece."
O
que há de comum nos três casos? Cada qual, à sua própria maneira, desconsidera
o peso da estrutura social na manipulação de escolhas, na determinação da forma
de regime político adotada, no respeito ou não ao resultado das urnas e até
mesmo se deve haver eleições ou se é algo que deva ficar só para daqui a 26
anos. Diz-se que política é a arte do possível. E é preciso admitir: diz-se
quase nada com isso, já que a questão central é saber quem determina o que é
possível.
Pilatos
consultou o povo: "Jesus ou Barrabás?" Mas não incluiu seu nome nem o
de César, imperador romano e seu patrão, na lista de eventuais crucificados.
Quantos judeus não votariam nulo naquela páscoa por não admitirem, em sua
consciência, a desfaçatez daquele tribunal? Quantos não se questionaram:
"Por que o rico nunca vai à cruz?" "Por que é só gente da gente
que tem que morrer?" Quantos não desconfiaram da manipulação ideológica
provinda dos grandes sacerdotes, frequentadores assíduos dos luxuosos banquetes
promovidos pelos grandes proprietários? O sangue do camponês sem terra da
Galileia atraiu mais curiosos do que indignados. Por que?
“Democratas” que matam a democracia
Em
2018, dona Raimunda comemorou 78 verões de existência. Tinha 24 quando os
tanques tomaram as ruas e derrubaram o governo João Goulart,
constitucionalmente empossado. Um presidente que ela simpatizava porque se
preparava para implementar medidas nunca antes implementadas. Eram as Reformas
de Base: Reforma Agrária - terra para quem não tem terra; Reforma Urbana -
porque a cidade não deveria ser lugar só para quem tem muita grana, moradia
para as famílias sem teto; Reforma Tributária - para equilibrar a balança, já
que na época eram os mais pobres que pagavam mais impostos que os mais ricos, assim
como é hoje em dia.
Havia
muita gente empolgada com a democracia. A classe trabalhadora ia pra rua
praticamente todo dia para defender as Reformas de Base. O clima era de que
"agora a coisa vai". Mas aí o que veio foi o golpe. No primeiro
momento, a jovem Raimunda ficou confusa: "Como assim? Não estava tudo
conforme a lei?". Baculejada por um grupo de soldados quando se dirigia ao
trabalho, parou numa banca de jornal e viu, estampada na primeira página de O
Globo: "Ressurge a democracia!" Nas ruas tinha também gente bem
vestida e elegante gritando "Viva os militares, que nos salvaram do
demônio comunista!". Gente que se acreditava cristã, como dona Raimunda,
que passou a desconfiar de que, "assim como existem 'democratas' que matam
a democracia, existem 'cristãos' que crucificam Cristo".
A
jovem Raimunda ouviu os militares prometerem eleições diretas para logo em
breve. Escaldada com os acontecimentos, não se surpreendeu quando este
"logo em breve" durou 26 anos. Acompanhou a tortura dos que lutavam
contra o regime atroz. Viu a seleção de futebol campeã do mundo ser usada como
anestésico para os problemas sociais e pensou: "A mentira há de ter um
fim". Viu padres e freiras sendo tratados como "subversivos"
porque, sendo fiéis ao Evangelho, optaram por estar ao lado dos oprimidos. E se
encheu de empolgação quando escutou um bispo declarar em sua simplicidade
corajosa que "subversiva é a realidade que denunciamos". Conheceu as
CEBs e, nas Comunidades Eclesiais de Base, se reencontrou com o Jesus militante
do Reino da igualdade e da justiça. Foi lá que descobriu que quando a Igreja
está ao lado dos ricos dando sopão aos pobres, é santa; mas quando pergunta por
que o pobre é pobre, é comunismo. Nas CEBs, conheceu também um pouco da
história da América Latina, foi quando a máscara caiu por completo: "Nunca
haverá democracia na política enquanto não houver democracia na economia. Os
ricos só toleram os pobres enquanto mão-de-obra, jamais como seres de direitos.
Não existe política da classe trabalhadora sem que se ataque a base da riqueza
da classe que está no poder."
O fascínio luminoso em um tempo em
que tudo parecia novo
Aquela
ditadura teve fim na década de 1980 por conta da pressão das ruas, luta que
dona Raimunda participou ativamente, mas no final das contas decidida por um
acordão entre os de cima, que acabou por determinar o ritmo e o conteúdo
prático das mudanças. As liberdades democráticas conquistadas, algo que dona
Raimunda muito valoriza, mas que não cegam sua vista, não fizeram diminuir o
peso das prisões, torturas e assassinatos dos mais pobres e dos que seguiram
lutando por justiça. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) registra que de 1985
para cá foram aproximadamente duas mil mortes no campo e quase nenhum mandante
julgado ou cumprindo pena. “Vó, por que morre tanta gente nessa tal
democracia?” "Pilatos, Margarida. Ele continua com o poder exclusivo de
julgar, e seus amigos fazendeiros com o poder econômico que a concentração da terra
dá", respondeu à sua netinha de apenas 9 anos.
No
intervalo entre o que estava deixando de ser e o que seria, dona Raimunda viu
se espalhar em todos os lares a televisão, logo considerada o membro mais
importante da família. Nas eleições presidenciais de 1989 sentiu pela primeira
vez o poder totalitário da onipresente caixinha luminosa. A manipulação da
edição do último debate entre os presidenciáveis Luiz Inácio da Silva e
Fernando Collor de Melo deu a vitória ao candidato dos marajás. "É
impossível a uma democracia conviver com uma ditadura como essa da Rede Globo.
A gente vota, mas é ela quem escolhe", pensou.
Pela
mesma Rede Globo assistiu à queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.
Mais uma grande preocupação: parte importante da militância escorregou na casca
de banana burguesa e abandonou os ideais de um novo mundo. "Agora ficou
fácil para os opressores. Nosso time carece de ataque." Engolidas pela
lógica eleitoreira, organizações abandonam o trabalho de base e a luta deixa de
ter uma finalidade educativa para se transformar em poder de barganha, uma
espécie de assistencialismo combativo. Dona Raimunda chorou de indignação ao
ver que o partido que ajudara a construir abrira mão de seu programa para se
aliar a opressores. "Não há acordo possível entre nós de cá e eles de
lá", e seguiu com seu trabalho de formiguinha junto às comunidades.
“Passarinho preso na gaiola não
canta, protesta!”
Em
junho de 2013, aos 73 anos de idade, tão logo soube que tinha gente na rua
lutando contra o aumento das passagens de ônibus, botou o pé na estrada e se
juntou a milhões de jovens que também protestavam contra os bancos, a ditadura
da mídia, a farsa da democracia representativa dos ricos e por maiores
investimentos no setor público. Por pouco não perdeu a vida biológica quando
uma bomba de gás lacrimogêneo explodiu a um passo de onde gritava palavras de
ordem. Depois de dias internada, acordou e entendeu que sua missão na terra
ainda não terminara.
"Dona
Raimunda, tão dizendo que vão derrubar a Dilma com o tal de ‘impitchimam’. A
senhora concorda?" "Não, não concordo. Isso aí é golpe! E golpe ou é
para impedir melhora ou é para piorar a situação. Se fosse o povo, a classe
trabalhadora lutando para acabar com as desigualdades, contra a exploração, eu
concordaria." "Concordaria com o golpe?" "Aí já não seria
golpe, Carlos. Seria revolução."
Aos
78 anos de idade, por lei, o voto para ela não é mais obrigatório. "Nestas
eleições, não entregaremos 'santinhos' em nome de ninguém, muito menos nos
calaremos. Nossa comunidade de base decidiu fazer uma campanha diferente. Vamos
estudar a forma oficial de fazer política com o povo para entendermos seus
limites, seu amarramento às grandes empresas. E votaremos nos candidatos de
esquerda, que estão na luta com a gente. Discutiremos projeto de sociedade e
não projeto eleitoreiro. Esse é o nosso jeito de fazer política, de ser Igreja.
O coração, de onde vem o bombeamento do sangue vermelho que nos anima a vida,
deve estar na organização e nas lutas populares. Essa é nossa verdadeira
segurança contra os que querem andar para trás e garantia de um futuro de vida
plena para todas e todos."
Como
um passarinho preso na gaiola, dona Raimunda, ao declarar que perde o valor no
instante em que vota, não canta, protesta! Protesta contra um sistema que
aprisiona o povo, impedindo-o de exercer o direito sagrado de decidir o seu
destino. Protesta e faz questão de lembrar, com a motivação de sempre, o que
disse certa vez o papa Francisco: "Todos os muros ruem. Todos!"
Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
*Originalmente publicado em Informativo Redentorista.