sexta-feira, 27 de julho de 2018

A Luta Das Mulheres Por Uma Sociedade Igualitária



A luta das mulheres por vida digna existe há séculos e, por que não dizer, milênios. Apesar de importantes conquistas, ainda não se chegou ao ponto de falar aos quatro cantos: “Agora, sim, mulherada, temos voz e vez!” Este objetivo é o que buscam muitas mães de famílias, mulheres da classe trabalhadora, militantes.

Maria de Nazaré, uma das pioneiras nessa luta que se tem notícia, grávida ainda muito jovem e pobre, ela moveu com sua coragem uma sociedade inteira. Foi contra a opressão e, por isso, caluniada e perseguida pelos poderosos. Mas não desistiu de lutar por ideais de igualdade e justiça, os mesmos que ensinou a seu filho. 

As mulheres, especialmente da classe trabalhadora, têm o rosto de Maria de Nazaré em sua essência. Anseiam por justiça, dia após dia. Muitas cantarolam e rezam para que sua realidade social mude, sem mesmo saberem a força que têm. Trabalham dia e noite para sustentar sua família, vítimas de um sistema que as marginaliza. Milhares são violentadas diariamente nas ruas, no trabalho e no lar. Isso tem que parar! 

Não cabe assistirmos a tudo como plateia, sentadas/os ou em pé, observando ou aplaudindo. Temos que estar dentro do espetáculo que transforma a sociedade. 

No ano de 1932, as brasileiras conquistamos o direito ao voto. Uma conquista ainda segregada e maquiada pelos poderes instituídos. Mulheres casadas só podiam votar se os maridos permitissem, e as solteiras e viúvas só teriam este direito se possuíssem renda própria. Contradição de uma sociedade marcadamente machista e patriarcal!

Muitas e difíceis lutas foram necessárias para chegarmos até aí, e muitas outras surgiram e surgirão pela frente. O caminho para a igualdade plena ainda é longo. As lutas feministas elegeram a primeira deputada no Brasil, Carlota Pereira Queiroz, no ano de 1934. E somente em 1946 a obrigatoriedade do voto foi estendida às mulheres, tal como era para os homens.

Para que as mulheres estejam presentes e desempenhando seu papel como indivíduos de direitos é preciso dialogar sobre política, é preciso fazer política! Uma política que discuta sua história, seu papel na sociedade, seus anseios e medos diante dos preconceitos e discriminações. Discutir sobre raça, sexualidade, família, moradia, trabalho, educação, saúde, reformas tributárias, agrária e trabalhista, discutir sobre o feminicídio, sexismo e sobre as relações de oprimidos e opressores existentes no capitalismo. É preciso ter coragem como Maria, como Patrícia, Margarida... e não temer a luta pela dignidade que deve constar a todo ser humano. 

Angela Davis, ativista norte americana, exemplo desde a década de 60 e inspiração para muitos movimentos de mulheres, pontua em seu livro “Mulheres, Cultura e Política” a importância da perseverança nas lutas: “Lembrem-se que vocês não devem apenas imaginar e sonhar com seus objetivos futuros – bem como com o futuro do mundo –, mas devem se levantar, unir-se e lutar pela paz, por empregos, pela igualdade e pela liberdade!” 

Portanto, mulheres, nossa luta é a partir de nossa casa, mas também é em saída. Quebremos as correntes que nos aprisionam! As correntes da discriminação, da pobreza e da violência opressora, alimentadas por esse poder obscuro que lucra a partir do sofrimento do povo. E vamos juntas e juntos rumo à uma sociedade igualitária. Que os opressores tremam com mulheres que sonham e que lutam! 



Por Caroline Cirqueira, militante da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e da Organização Popular (OPA).

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Eleições*


Nesta e na próxima edição trataremos do tema “Eleições”, não da forma como comumente nos é apresentado, das candidaturas para o eleitorado. Acreditamos que esse jeito de discutir política não politiza. Isso porque as eleições se encontram dentro de um contexto mais amplo, de luta de classes, opressores e oprimidos, numa sociedade cuja lógica de funcionamento gera cada vez mais desigualdades e onde quem tem, elege, e quem não tem, quando é permitido, só vota.

Agora problematizaremos a questão de uma maneira geral, que servirá de base para entrarmos mais detidamente nas eleições 2018, tema da próxima edição. De antemão, para quem quer se inteirar mais, recomendamos a leitura de “Um raio-X na democracia”, reflexão publicada no número VIII do Informativo Redentorista e atualmente disponível no blog “Cebs Comunica”.


Já se perguntou qual a quantidade de pessoas que invalidam o voto à cada eleição? Os registros oficiais contabilizam uma crescente desde 1989, quando reconquistamos o direito de votar diretamente para presidente da república. Nas eleições de 2016, nulos, brancos e abstenções chegaram a superar a votação do primeiro ou do segundo colocado em 21 das 26 capitais estaduais em todo o país. Se contarmos o chamado voto de protesto, o por cabresto, o votar por votar, o atendimento ao pedido do amigo, o voto na celebridade, o voto de quem “não quer perder” o voto, o do candidato com mais tempo de televisão, nos cartazes e nos carros de som, o voto comprado, o no bonitão ou na bonitona, o do santinho da boca de urna e por aí vai, não seria de espantar se nos deparássemos com uma invalidação beirando os 70 ou 80%.

O que esses números nos dizem? E, melhor, o que faremos com o recado dado? Já que “invalidação” não é bem a palavra correta, uma vez que alguma mensagem é transmitida quando dona Raimunda aperta o botãozinho da urna eletrônica e diz: “Pronto! Perdi meu valor."

Há entidades que trabalham em prol do voto "consciente". Pelo visto não tem surtido muito efeito. Prova de que boa vontade somente não é suficiente. Outros defendem o voto facultativo. Como se essa medida facultasse também à dona Raimunda perder ou manter seu valor. Quem vê aí uma saída para a crise de representatividade talvez esteja esquecendo que os mais ricos, que criam a miséria, bancarão ônibus e merenda pros mais pobres irem votar em seus candidatos. E há quem inverta os papéis entre algoz e vítima: "Cada povo tem o governo que merece."

O que há de comum nos três casos? Cada qual, à sua própria maneira, desconsidera o peso da estrutura social na manipulação de escolhas, na determinação da forma de regime político adotada, no respeito ou não ao resultado das urnas e até mesmo se deve haver eleições ou se é algo que deva ficar só para daqui a 26 anos. Diz-se que política é a arte do possível. E é preciso admitir: diz-se quase nada com isso, já que a questão central é saber quem determina o que é possível.

Pilatos consultou o povo: "Jesus ou Barrabás?" Mas não incluiu seu nome nem o de César, imperador romano e seu patrão, na lista de eventuais crucificados. Quantos judeus não votariam nulo naquela páscoa por não admitirem, em sua consciência, a desfaçatez daquele tribunal? Quantos não se questionaram: "Por que o rico nunca vai à cruz?" "Por que é só gente da gente que tem que morrer?" Quantos não desconfiaram da manipulação ideológica provinda dos grandes sacerdotes, frequentadores assíduos dos luxuosos banquetes promovidos pelos grandes proprietários? O sangue do camponês sem terra da Galileia atraiu mais curiosos do que indignados. Por que?

“Democratas” que matam a democracia

Em 2018, dona Raimunda comemorou 78 verões de existência. Tinha 24 quando os tanques tomaram as ruas e derrubaram o governo João Goulart, constitucionalmente empossado. Um presidente que ela simpatizava porque se preparava para implementar medidas nunca antes implementadas. Eram as Reformas de Base: Reforma Agrária - terra para quem não tem terra; Reforma Urbana - porque a cidade não deveria ser lugar só para quem tem muita grana, moradia para as famílias sem teto; Reforma Tributária - para equilibrar a balança, já que na época eram os mais pobres que pagavam mais impostos que os mais ricos, assim como é hoje em dia.

Havia muita gente empolgada com a democracia. A classe trabalhadora ia pra rua praticamente todo dia para defender as Reformas de Base. O clima era de que "agora a coisa vai". Mas aí o que veio foi o golpe. No primeiro momento, a jovem Raimunda ficou confusa: "Como assim? Não estava tudo conforme a lei?". Baculejada por um grupo de soldados quando se dirigia ao trabalho, parou numa banca de jornal e viu, estampada na primeira página de O Globo: "Ressurge a democracia!" Nas ruas tinha também gente bem vestida e elegante gritando "Viva os militares, que nos salvaram do demônio comunista!". Gente que se acreditava cristã, como dona Raimunda, que passou a desconfiar de que, "assim como existem 'democratas' que matam a democracia, existem 'cristãos' que crucificam Cristo".

A jovem Raimunda ouviu os militares prometerem eleições diretas para logo em breve. Escaldada com os acontecimentos, não se surpreendeu quando este "logo em breve" durou 26 anos. Acompanhou a tortura dos que lutavam contra o regime atroz. Viu a seleção de futebol campeã do mundo ser usada como anestésico para os problemas sociais e pensou: "A mentira há de ter um fim". Viu padres e freiras sendo tratados como "subversivos" porque, sendo fiéis ao Evangelho, optaram por estar ao lado dos oprimidos. E se encheu de empolgação quando escutou um bispo declarar em sua simplicidade corajosa que "subversiva é a realidade que denunciamos". Conheceu as CEBs e, nas Comunidades Eclesiais de Base, se reencontrou com o Jesus militante do Reino da igualdade e da justiça. Foi lá que descobriu que quando a Igreja está ao lado dos ricos dando sopão aos pobres, é santa; mas quando pergunta por que o pobre é pobre, é comunismo. Nas CEBs, conheceu também um pouco da história da América Latina, foi quando a máscara caiu por completo: "Nunca haverá democracia na política enquanto não houver democracia na economia. Os ricos só toleram os pobres enquanto mão-de-obra, jamais como seres de direitos. Não existe política da classe trabalhadora sem que se ataque a base da riqueza da classe que está no poder."

O fascínio luminoso em um tempo em que tudo parecia novo

Aquela ditadura teve fim na década de 1980 por conta da pressão das ruas, luta que dona Raimunda participou ativamente, mas no final das contas decidida por um acordão entre os de cima, que acabou por determinar o ritmo e o conteúdo prático das mudanças. As liberdades democráticas conquistadas, algo que dona Raimunda muito valoriza, mas que não cegam sua vista, não fizeram diminuir o peso das prisões, torturas e assassinatos dos mais pobres e dos que seguiram lutando por justiça. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) registra que de 1985 para cá foram aproximadamente duas mil mortes no campo e quase nenhum mandante julgado ou cumprindo pena. “Vó, por que morre tanta gente nessa tal democracia?” "Pilatos, Margarida. Ele continua com o poder exclusivo de julgar, e seus amigos fazendeiros com o poder econômico que a concentração da terra dá", respondeu à sua netinha de apenas 9 anos.


No intervalo entre o que estava deixando de ser e o que seria, dona Raimunda viu se espalhar em todos os lares a televisão, logo considerada o membro mais importante da família. Nas eleições presidenciais de 1989 sentiu pela primeira vez o poder totalitário da onipresente caixinha luminosa. A manipulação da edição do último debate entre os presidenciáveis Luiz Inácio da Silva e Fernando Collor de Melo deu a vitória ao candidato dos marajás. "É impossível a uma democracia conviver com uma ditadura como essa da Rede Globo. A gente vota, mas é ela quem escolhe", pensou.

Pela mesma Rede Globo assistiu à queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Mais uma grande preocupação: parte importante da militância escorregou na casca de banana burguesa e abandonou os ideais de um novo mundo. "Agora ficou fácil para os opressores. Nosso time carece de ataque." Engolidas pela lógica eleitoreira, organizações abandonam o trabalho de base e a luta deixa de ter uma finalidade educativa para se transformar em poder de barganha, uma espécie de assistencialismo combativo. Dona Raimunda chorou de indignação ao ver que o partido que ajudara a construir abrira mão de seu programa para se aliar a opressores. "Não há acordo possível entre nós de cá e eles de lá", e seguiu com seu trabalho de formiguinha junto às comunidades.

“Passarinho preso na gaiola não canta, protesta!”

Em junho de 2013, aos 73 anos de idade, tão logo soube que tinha gente na rua lutando contra o aumento das passagens de ônibus, botou o pé na estrada e se juntou a milhões de jovens que também protestavam contra os bancos, a ditadura da mídia, a farsa da democracia representativa dos ricos e por maiores investimentos no setor público. Por pouco não perdeu a vida biológica quando uma bomba de gás lacrimogêneo explodiu a um passo de onde gritava palavras de ordem. Depois de dias internada, acordou e entendeu que sua missão na terra ainda não terminara.

"Dona Raimunda, tão dizendo que vão derrubar a Dilma com o tal de ‘impitchimam’. A senhora concorda?" "Não, não concordo. Isso aí é golpe! E golpe ou é para impedir melhora ou é para piorar a situação. Se fosse o povo, a classe trabalhadora lutando para acabar com as desigualdades, contra a exploração, eu concordaria." "Concordaria com o golpe?" "Aí já não seria golpe, Carlos. Seria revolução."

Aos 78 anos de idade, por lei, o voto para ela não é mais obrigatório. "Nestas eleições, não entregaremos 'santinhos' em nome de ninguém, muito menos nos calaremos. Nossa comunidade de base decidiu fazer uma campanha diferente. Vamos estudar a forma oficial de fazer política com o povo para entendermos seus limites, seu amarramento às grandes empresas. E votaremos nos candidatos de esquerda, que estão na luta com a gente. Discutiremos projeto de sociedade e não projeto eleitoreiro. Esse é o nosso jeito de fazer política, de ser Igreja. O coração, de onde vem o bombeamento do sangue vermelho que nos anima a vida, deve estar na organização e nas lutas populares. Essa é nossa verdadeira segurança contra os que querem andar para trás e garantia de um futuro de vida plena para todas e todos."

Como um passarinho preso na gaiola, dona Raimunda, ao declarar que perde o valor no instante em que vota, não canta, protesta! Protesta contra um sistema que aprisiona o povo, impedindo-o de exercer o direito sagrado de decidir o seu destino. Protesta e faz questão de lembrar, com a motivação de sempre, o que disse certa vez o papa Francisco: "Todos os muros ruem. Todos!"

Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
*Originalmente publicado em Informativo Redentorista.


Teologia da Libertação: “Deus e os Pobres continuam”*


                                                                                                                     Por padre Júlio Ferreira**

Certa vez, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Felix do Araguaia, indagado sobre o fim da Teologia da Libertação, respondeu: "Deus e os pobres continuam." Aqui está, nas palavras de Dom Pedro, a raiz dessa teologia latino-americana, que tem a capacidade e a ousadia de refletir Deus a partir do processo histórico. Uma Teologia que está estritamente ligada à irrupção dos pobres na Igreja e na sociedade.

A Teologia da Libertação tem suas origens no Concílio Vaticano II (1962 à 65). Foi esse concílio que deu o ponta pé inicial para que a Igreja se revisitasse e analisasse sua relação com o mundo. Essa era a intenção do papa João XXIII, quando convocou o concílio. É a Igreja se abrindo e se reconhecendo como povo de Deus, servidora e solidária, capaz de escutar os clamores, as angústias, as tristezas, as alegrias e as esperanças da humanidade de hoje. 

Na América Latina, a recepção do Concílio Vaticano II se deu de forma criativa. Em Medellin, na Colômbia (1968), o episcopado latino-americano teve a preocupação de adaptar as intuições do concílio à realidade, marcada pelos clamores e exclusão  dos pobres e marginalizados. A conferência refletiu a urgência de uma nova consciência de Igreja e novos modos de viver a fé. Além das provocações do concílio, tão bem aceitas pela Igreja da América Latina, também contribuíram para as decisões: o binômio opressão - libertação; a presença dos cristãos nas revoluções, particularmente com o advento da revolução cubana; as resistências nos movimentos sociais libertadores e a emergência de uma nova concepção teológica. 

A grande pergunta da Teologia da Libertação é: como encontrar Deus em meio à dor e a opressão em que vivem os pobres da América Latina? Essa teologia nasce justamente do confronto entre a urgência de anunciar a Vida do Ressuscitado e a situação de morte em que se encontram os pobres latino-americanos. O que ela busca é que se compreenda que, sem compromisso permanente com os pobres e sua libertação, estamos longe da mensagem cristã.

A Teologia da Libertação coloca o problema da missão da Igreja e das suas opções dentro de uma realidade conflitante, marcada por grandes desigualdades sociais, onde alguns poucos enriquecem às custas das misérias de muitos. 

É o teólogo peruano, Gustavo Gutierrez, um dos pioneiros em articular a salvação com o processo histórico de libertação integral do ser humano. Gutierrez é reconhecido como o primeiro a sistematizar a Teologia da Libertação. Ele consegue articular Deus, o contexto histórico, o mundo dos pobres e seus problemas centrais, as ciências sociais, a profecia e a mística. Para Gutierrez, os pobres têm uma força histórica libertadora. 

A Igreja da América Latina conseguiu enxergar as mazelas produzidas por uma sociedade que divide as pessoas em classes, por causa de uma estrutura que pretende sempre mais manter privilégios para uma minoria. Começou a entender que era preciso identificar e analisar as causas estruturais que provocam as injustiças e opressões em que vivem os pobres da América Latina. E que, à luz do Evangelho, teriam que ser denunciadas.

Nessa nova ótica, passou-se a olhar o pobre não apenas no aspecto daquele que precisa de um prato de comida ou de uma esmola, mas como sujeito de transformação de estruturas injustas e pecaminosas. A pobreza não é mais concebida como vontade de Deus, mas como consequência da concentração de riquezas e, antes, de suas causas estruturais. E por causa dessa nova concepção, começaram as perseguições aqueles e àquelas que se colocam contra o sistema opressor.

“Quando dava comida aos pobres, me chamavam de santo; mas quando comecei a questionar as causas da pobreza, começaram a chamar-me de comunista”, disse Dom Helder Câmara. Dom Oscar Romero, assassinado por um soldado a mando do governo militar de El Salvador, por enfrentar as atrocidades do governo norte americano naquele país. Margarida Alves, lavradora da Paraíba, entendeu que era “melhor morrer na luta do que morrer de fome”. Homens e mulheres capazes de dar a vida por causa do Reino.

A espiritualidade do martírio faz parte da caminhada dos que passam a acreditar que não dá para ficar olhando para o céu enquanto Jesus continua sendo crucificado nos pobres desse mundo, nos operários, nos indígenas, nos quilombolas, nos sem teto, nos sem terra, nos LGBTs, nas mulheres, no extermínio da juventude. O mártir é alguém  capaz de identificar-se com Jesus crucificado e de sentir profunda compaixão.

Beber dessa espiritualidade libertadora é o grande desafio para os cristãos e cristãs de todos os tempos. Pena que alguns ainda preferem se contentar com uma fé ingênua e acabam compactuando com um sistema de morte, que, segundo o  papa Francisco, não se sustenta mais. Os que abraçam o seguimento radical à pessoa de Jesus de Nazaré são militantes nos partidos políticos que não se rendem à fúria do capital; nos sindicatos, nos movimentos sociais; nas organizações populares e nas pastorais sociais. 

As Comunidades Eclesiais de Base são o modelo de Igreja que dá suporte à Teologia da Libertação e ao mesmo tempo é essa Teologia que fortalece esse modelo de Igreja. As CEBs são consideradas  como  "um verdadeiro  tecido social da Igreja dos pobres". A Igreja que faz uma opção preferencial pelos pobres é uma Igreja que aprendeu a olhar com "um olho na Bíblia e outro olho na realidade." É uma Igreja que celebra a fé e a vida, consciente de que o Reino de Deus se dá na concretude da História. 

*Publicado originalmente em Informativo Redentorista.
**Padre Júlio Ferreira é missionário redentorista.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

“Ser campeão é um detalhe”*


Ditador Médici e o uso político da 
Seleção campeã de 1970


Por Thales Emmanuel**

Segundo estimativas, 3,4 bilhões de pessoas devem assistir aos jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na Rússia. Um recorde impressionante, apesar de nem todos sermos animais bolísticos e, diga-se de passagem, nem toda bola rolar em campos de futebol. Afastada das discussões sobre planos táticos e da especulação sobre que seleção levará a taça, há uma dimensão do futebol tão pouco comentada, que, para alguns, sequer pode ser considerada futebol. Trata-se do uso político e econômico deste que é o esporte mais popular do planeta. A chamada "paixão nacional" para brasileiros e brasileiras não cabe nas quatro linhas em que o debate esportivo geralmente é confinado.
Reza a lenda que ele, mais ou menos como conhecemos hoje, chegou em terras tupiniquins, via cidade de São Paulo, trazido da Inglaterra em finais de mil e oitocentos. Em suas primeiras décadas de Brasil, era praticado como esporte de elite por homens brancos ricos, como é o golfe atualmente. Isso acontecia ao mesmo tempo em que, nos terrenos baldios, as peladas organizadas pela juventude empobrecida, predominantemente negra, era reprimida pela polícia como ato de vagabundagem. A inclusão de atletas de raça e origem das classes oprimidas nas ligas oficiais se deu na marra, contra a discriminação explícita. Futebol era sinônimo de distinção social. A profissionalização veio somente na década de 1930, quando, enfim, a ginga e a resistência sobrevivente do morro misturaram-se definitivamente ao esporte, tornando-o arte.
Não tendo como não imitar a vida, o futebol, numa sociedade marcada pelo racismo, machismo e pela exploração e marginalização dos que operam sua edificação, seguiu controlado por homens brancos e ricos. O novo momento adequou-se às velhas estruturas de dominação. Não tardou a se perceber que a "alegria do povo" poderia também alegrar grandes negócios. Para Maurício Drumond, "a popularidade de esportes como o futebol se apresentava como um novo meio de levar a ideologia oficial às massas."
E foi assim, aproveitando-se da máxima de que "futebol não se discute" e da abertura crédula própria aos apaixonados, sua legião de torcedores, que o jogo dos onze contra onze foi dopado com interesses políticos e econômicos para atender a fins que não se revelam no placar eletrônico ao final da partida.
Há inúmeros casos conhecidos desse uso. O mais famoso talvez seja o da demissão do técnico João Saldanha, às vésperas da Copa de 70, período mais sangrento da ditadura militar-empresarial iniciada com o golpe de 1964. Após comandar a maior sequência de vitórias da história do escrete canarinho, João Sem Medo, como o treinador era conhecido, respondeu sem rodeios a uma tentativa de interferência do então presidente-ditador Emílio Garrastazu Médici sobre a lista de jogadores a serem convocados: "O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo o meu time." Saldanha, que aproveitava viagens internacionais para denunciar a repressão do regime, foi demitido logo em seguida e a campanha da Seleção no mundial, exaustivamente utilizada para cobrir de patriotismo e unidade nacional uma política subserviente ao capital internacional e massacradora de sua gente.
Os esquemas de corrupção descobertos na FIFA e na CBF, parcialmente revelados ("parcialmente" porque o futebol deixaria de ser "uma caixinha de surpresas" e perderia o encanto vindo do inusitado, fator este transformado em principal atrativo comercial, se toda sujeira fosse dita), e o uso da simbologia da Seleção em manifestações manipuladas por setores golpistas neoliberais são trapaças que ganharam destaque mais recentemente. Contudo, o maior peso da utilização político-econômica do esporte é sutil e cotidiano. Através principalmente da televisão se fabricam ídolos, que influenciam comportamentos e padrões de consumo. Sem nos darmos conta, já estamos torcendo pela multinacional patrocinadora e divulgando sua marca como fiéis militantes. A indústria do entretenimento não produz torcedores, mas consumidores alheios aos problemas sociais. Por ela, opostos se tornam irmãos inseparáveis, como álcool e esporte; e irmãos de uma mesma condição social viram "inimigos", como torcidas organizadas de jovens pobres em guerra contra jovens pobres de outras torcidas; ambos, mortos e feridos, sem notarem que são igualmente barrados no baile da elitização dos estádios, retrato de uma sociedade sem ingresso para os sem poder de consumo.
Assistindo ou praticando, o futebol pode nos proporcionar momentos de alegria em meio a uma vida sofrida. Como resistir ao encanto da dádiva poética torta e incontível de um Garrincha sem, ao mesmo tempo, ofender a Deus? Se a lógica do mercado nos idiotiza, a arte nos humaniza. Alegria e alienação não se misturam por obra da natureza, mas por força de interesses financeiros. Em Fortaleza-CE, uma das mais lindas lutas populares da última década aconteceu em plena Copa das Confederações, 2013, quando torcidas organizadas de Ceará, Fortaleza e Ferroviário se uniram a movimentos populares na avenida Dedé Brasil. Semanas atrás, por pressão internacional e de sua própria torcida, a Associação Argentina de Futebol teve que cancelar amistoso que realizaria com a seleção israelense, após as forças armadas desse país protagonizarem mais um sangrento massacre contra o povo palestino.
Futebol não muda o mundo. Mas ambos, futebol e mundo, mudam quando deixamos de ser passivos expectadores nessa bola gigante chamada Terra, que, aliás, ainda não deu seu último giro. Que o diga a Democracia Corintiana, para quem “ser campeão é um detalhe”.


*Originalmente publicado em Informativo Redentorista, Vice-Província de Fortaleza.
** Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

domingo, 13 de maio de 2018

A Paixão de Cristo na Paixão dos LGBT*

Foto: Reuters/João Castellano


Por Luís Corrêa Lima1 

O padre Júlio Lancellotti trabalha corajosamente na cidade de São Paulo com população de rua. Ele relata a situação dramática que encontra:  

Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBT que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abuso, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos das igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue e fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado!2

Esta sensibilidade espiritual é profundamente cristã, pois o Filho eterno de Deus ao se tornar humano é solidário com toda humanidade, especialmente os pobres e os que sofrem. É o próprio Jesus que diz: “tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber [...] pois todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes(Mt 25, 31-46). Ele se identifica com famintos, sedentos, estrangeiros, nus, enfermos e encarcerados. Na sua crucifixãoJesus se torna solidário com todos os crucificados da história, com todos os que sofrem brutal e injustamente, incluindo os LGBT. Mas a Sua paixão é desqualificada pelos seus adversários que sordidamente dizem: “Salva-te a ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da cruz! (Mt 27,40). 

A violência contra LGBT tornou-se mais evidente por causa de sua visibilidade no mundo atual. No passado, para se defender da intolerância e da hostilidade, muitos deles viviam no anonimato ou à margem da sociedade. Vários gays e lésbicas se escondiam no casamento tradicional, constituído pela união heterossexual, para não manifestarem sua condição. Travestis e transexuais não tinham acesso aos procedimentos de transexualização hoje disponíveis. Em alguns lugares formavam guetos, que eram espaços de convivência bastante reservados como forma de proteção dos indivíduos. Atualmente a situação é bem diferente. Muitos deles fazem grandes paradas, estão presentes em filmes, programas de televisão, olimpíadas, empresas, escolas e outras instituições; buscam reconhecimento, exigem ser respeitados e reivindicam os mesmos direitos e deveres dos demais cidadãos. Esta população está em toda parte. Quem não faz parte dela, tem parentes próximos ou distantes que fazem, velada ou manifestamente, bem como vizinhos ou colegas de trabalho. 

A aversão aos LGBT produz diversas formas de violência física e verbal. Há pais de família que já disseram: “Prefiro um filho morto a um filho gay!Há avós que já disseram: “Prefiro vinte netas putas a uma neta sapatão!”.  Não são raros travestis, gays e lésbicas expulsos de casa por seus pais. Entre os palavrões mais ofensivos em português, constam a referência à condição homossexual (veado!) e ao sexo anal, comum no homoerotismo masculino. Ou seja, é xingamento. Muitas vezes, quando se diz: “fulano não é homem”entende-se que é gay; ou “fulana não é mulher”, que é lésbica. Ou seja, ser homem ou mulher supostamente exclui a pessoa homossexual. Esta aversão se enraíza profundamente na cultura. No Brasil são muito frequentes os homicídios, sobretudo de travestis. Não raramente, estes homicídios são cometidos com requintes de crueldade. Há também suicídios de muitos adolescentes que se descobrem LGBT, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por sentirem a hostilidade da própria família, da escola e da sociedade. Calcula-se que o índice de suicídio nesta população é cinco vezes maior que no restante. Toda esta hostilidade com inúmeras formas de discriminação, mesmo quando não leva à morte, traz frequentemente tristeza profunda ou depressão. 

Curiosamente, esta realidade está ausente em muitos documentos da Igreja Católica. Ao se falar de pobres, excluídos e pessoas que sofrem, menciona-se frequentemente: migrantes, vítimas da violência, refugiados, vítimas de sequestro e tráfico de pessoas, desaparecidos, portadores de HIV, vítimas de enfermidades endêmicas, tóxico-dependentes, idosos, meninos e meninas vítimas da prostituição, pornografia, violência ou trabalho infantil; mulheres maltratadas, vítimas de exclusão e exploração sexual, pessoas com deficiência, grandes grupos de desempregados, excluídos pelo analfabetismo tecnológico, moradores de rua em grandes cidades, indígenas, afro-americanos, agricultores sem terra e mineiros3. Infelizmente, falar de LGBT ainda é incômodo em muitos ambientes. Não raramente, o sofrimento desta população é ignorado ou silenciado. 

Para representar a violência sofrida por eles e elas, a travesti e atriz Viviany Beleboni encenou uma crucifixão em uma parada em São Paulo. Depois disto, ela mesma foi agredida violentamente duas vezes como forma de retaliação. Levou chutes, sofreu cortes no corpo, teve hematomas e dentes quebrados. Sobre a segunda agressão, feita por cinco homens, ela relata algo revelador sobre a motivação dos agressores: 

A todo momento falavam que eu era um demônio, que essa raça tinha que morrer. Recitavam passagens da Bíblia ou que diziam alguma coisa relacionada à Bíblia. Falavam em Romanos e coisas como não te deitarás com um homem, como se fosse mulher e muitas palavras que não entendia, como se fosse em outro idioma. Eles diziam também traveco vira homempraga da humanidade. Ofensas e Chutes. Quero esquecer4. 

Lamentavelmente, estes agressores fanáticos utilizam a Palavra de Deus, tirando-a do contexto em que foi escrita, para justificar a demonização do outro e agressão brutal. Tornam-na uma palavra de morte, um instrumento diabólico. Dela extraem “balas bíblicas” disparadas impiedosamente contra homossexuais e transgêneros. 

A hostilidade a LGBT não é gratuita. Há importantes indicações de que o preconceito contra esta população seja um temor inconsciente do coração humano que se recusa a reconciliar-se com a própria verdade. O medo do perigo de contágio, fanatismos, rigorismos e repugnâncias em relação eles e elas revelam uma necessidade de ocultar a verdade sobre a própria existência, ou sobre impulsos interiores. Na base dos preconceitos, há frequentemente o medo de perder a própria segurança diante do que é diferente, estranho e desconhecido, catalogando-o por isso mesmo como perigoso e inferior. Quanto maiores o fanatismo e a repugnânciaprovavelmente existe também uma maior necessidade de ocultar a própria existência, ou uma plena recusa a reconciliar-se com a própria verdade 

Júlio Lancellotti reconheceu a paixão de Cristo na população de rua LGBT. Viviany Beleboni a representou e a sofreu. Recentemente Marielle Franco foi assassinada. Ela era bissexual e defendia os direitos humanos de diversas populações. A paixão de Cristo consequência de Sua vida e luta em favor do anúncio do Reino de Deus. Não deve ser jamais desqualificada. O Seu corpo é dado e o Seu sangue é derramado pela salvação da humanidade. Não nos esqueçamos dos crucificados da história com os quais o Cristo é solidário, nem deixemos que os desqualifiquem e esqueçam. Cultivar a memória deles e delas é trilhar o caminho que conduz à ressurreição. 


*Texto publicado originalmente em Informativo Redentorista - Vice-Província de Fortaleza, edição X.

1 Luís Corrêa Lima é padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com temas de modernidade, história da Igreja, diversidade sexual e de gênero. 
2 LANCELLOTTI, J. Postagem, 9/6/2015. .
3 CELAM. Documento de Aparecida, 2007, n. 402.
4 QUERINO, Lucas. “Viviany Beleboni é espancada novamente por cinco homens: ‘Demônio’”. 12 jul. 2016. Disponível em: .