Vivemos tempos
difíceis, no Brasil e no mundo. De cem anos para cá, se pegarmos os dados
disponíveis, perceberemos que a morte avança perigosamente sobre a vida. A
desigualdade social é maior: ricos mais ricos e mais pobres cada vez mais
pobres. As mortes por armas de fogo aumentam assustadoramente contra a
população marginalizada, em nosso país principalmente a negra. A indústria da
guerra amplia seu mercado consumidor e seu poder de destruição, tendo
presidente de república como garoto propaganda. A bomba lançada em Hiroshima,
atualizada em tecnologia, destruiria hoje a vida humana na terra num apertar de
botão. O verde da biodiversidade sofre grave desertificação com o avanço do
verde dos monocultivos tóxicos do agronegócio. A mineração a serviço do lucro
sepulta trabalhadores com dilúvios de lama de rejeitos. A seca deixa de ser uma
questão climática e só atinge quem não tem dinheiro para pagar pela água. Água,
dom de Deus apropriado por grandes empresas. Para aonde vamos? Para aonde
caminha a humanidade?
Não é preciso
ser profeta para entender que o futuro nos espera incandescente como a Amazônia
incendiada ou o mais terrível dos infernos nunca antes imaginado. “Nunca” é
modo de dizer, pois este inferno para muitos já existe há tempos. O mais
preocupante de tudo é que não são videntes que afirmam o tenebroso possível
destino da humanidade, mas a história. É a história, são os fatos que mostram
que marchamos em direção às ardentes labaredas.
Se, por um lado,
as previsões advindas de fatos desesperam mais do que qualquer poder de
adivinhação, por outro, anima saber que as mudanças de rumo estão ao alcance de
nossas ações. A história é uma construção humana! Por isso, não nos enganemos,
o primeiro alvo que os donos do capital e seus servidores buscam destruir é
nosso ânimo, nossa alma, nossa capacidade de acreditar que é possível caminhar
sobre águas tempestuosas e chegar a um chão seguro. “Não desistir é a única
maneira de vencer”, como ensina o militante no filme Uma História de Amor e
Fúria.
Para tanto, precisamos
aprender com a própria história, onde abundam exemplos de coragem e de vitória
das classes oprimidas. Aprender de verdade é, em muitos casos, aceitar a dor
como método pedagógico. Há muitas coisas que não queremos enxergar, mas que
saltam aos olhos. Muitas vezes, escutamos o que queremos e nos fazemos de
surdos ao que precisamos ouvir. No livro Êxodo, da Bíblia, por exemplo, Deus
escuta o clamor de seu povo contra os opressores, conhece seus sofrimentos (Ex
3, 7), serve de inspiração, caminha junto, mas é o povo quem tem que se
levantar e lutar pela sua libertação.
Muitas de nossas
angústias aparecem justamente por não aceitarmos esta verdade. Por medo, por
falsa compreensão ou por não sentirmos na pele o que sofre aquele que se
encontra na parte mais baixa da pirâmide social, acabamos terceirizando uma
missão que somente nós podemos realizar. “Liberdade não se pede, se
conquista!”, como diz dona Daisy Fernandes. E olha que Deus fala isso para
Moisés sem arrodeios: “...eu sei que o rei do Egito não os deixará ir, se não
for obrigado por mão forte” (Ex 3, 19).
Neste sentido, o
espanto constatado em alguns de nós espanta tanto ou até mais que os absurdos
das ordens que hoje saem de Brasília. As medidas políticas do atual governo
federal atentam contra nossa alma e o estrago é tanto maior quanto maior é a
ingenuidade de nossas consciências. Nas missas e celebrações, pedimos a Deus
que sensibilize governantes, que amoleça corações faraônicos. Entretanto,
praticamente não se escuta prece em relação ao fortalecimento da organização e
da luta do povo. Pedimos até para que se substitua por bons os maus
administradores do sistema que escraviza, como se a escravidão por si só não
fosse heresia que atenta contra a obra do Pai.
No filme
Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, a conversa é bem
diferente. O povo sabe o que quer e também o que não quer, aprende com sua
própria história e se constrói protagonista de sua libertação. As dores das
perdas são convertidas em organização e fé no enfrentamento aos opressores. E
não achemos nós que se trata de ficção. Bacurau é tão real quanto a revolução
protagonizada pelo povo hebreu no Egito e as batalhas há séculos enfrentadas
pelos povos indígenas do Brasil.
Nos setores
populares da Igreja, chegamos até a diagnosticar o mal como mal – “O
capitalismo não presta” –, mas quase nada falamos a respeito do que colocaremos
em seu lugar, que modelo de sociedade almejamos construir. Afinal de contas,
almejamos ou não a superação da ordem social do capital? Se sim, então qual o
nome político do Reino de Deus? A companheira Jocélia Ribeiro, das Comunidades Eclesiais
de Base, questiona o silêncio cristão ante a urgência da temática: “Por que não
conversamos sobre socialismo, sobre comunismo? Sabemos o que estas palavras
significam?” Óbvio que a nova sociedade não precisa ser chamada dessa forma.
Não importa o nome, basta que construamos uma estrutura social que nos permita
viver como irmãos e irmãs. Mas não nos iludamos: ter um objetivo é fundamental.
Se não sabemos para aonde ir, chegaremos a lugar nenhum. No Êxodo, não é
somente a luta contra a escravidão que interessa. O objetivo está traçado desde
o princípio da luta: marchar em direção à “terra onde corre leite e mel, o
território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuzeus” (Ex 3,
8).
Acontece que
entre a escravidão e a terra prometida há, invariavelmente, um extenso deserto.
Assim como a liberdade, a construção da igualdade passa por mãos humanas.
Humanos com seus medos, dúvidas, egoísmos e contradições. Humanos desumanizados
por regimes opressores. Mas também humanos em solidariedade, coragem,
criatividade e esperança. Humanos como nós. Não dá para anunciar o Reino sem
passar pelo deserto. Não é com esmola de tempo e de recursos que construiremos
um mundo de justiça e paz. O sacrifício de partilhar o que nos é essencial é o
nosso deserto e, ao mesmo tempo, anúncio de vida plena para todos e todas.
Neste sentido, o que temos feito?
“... eu lhes dou
a MINHA paz” (Jo 14, 27). A paz de Jesus não era a mesma paz proclamada pelo
Império Romano. A paz de César tinha como significado a relativa estabilidade
que passava o sistema opressor na época em que Jesus fora crucificado. A paz de
Jesus é o oposto da paz de César. Por isso os primeiros cristãos eram
conhecidos como “perturbadores da ordem”. A paz de Jesus é uma paz inquietante,
que estranha nas tripas as dores e sofrimentos dos oprimidos, e celebra junto
suas alegrias e conquistas. Paz como sinônimo de indignação e enfrentamento às
injustiças. O comodismo da indiferença, para Jesus, não era sinal de paz, mas
de crueldade. Como vivenciamos e como queremos vivenciar a paz de Cristo em
nosso dia a dia?
O momento que
atravessamos é difícil. Porém, se Deus nos colocou aqui, justo agora, não foi à
toa. Há sempre um admirável propósito ávido por se realizar nas entrelinhas
daquilo que muitos enxergam como trágica coincidência. E o nosso propósito,
como seguidores e seguidoras do Nazareno, é semear vida, luta e libertação. Não
nos rendamos à escravidão! Ponhamos, com ou sem medo, os dois pés para fora do
barco nessas águas turbulentas e façamos do deserto sinal de anunciação. Só
assim, eles, os poderosos e sua sociedade opressora, não passarão!
* Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA).
** Publicado em Informativo Redentorista.
* Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA).
** Publicado em Informativo Redentorista.
Assim seja e assim lutamos pela nova sociedade
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