Fortaleza, 24 de junho de 2015.
Por Thales Emmanuel*
Em
parte da sociedade, e mesmo entre aqueles/as que se vinculam aos/às
oprimidos/as preenchidos/as pelo ímpeto da missão popular libertadora, é comum
ver anseios para superação dos males sociais que atingem a maioria da população
serem depositados na perspectiva do diálogo entre governantes e governados,
patrões e empregados, entre os/as de cima e os/as de baixo. Com isso, as
perguntas que primeiro vêm à cabeça são: Isso é coerente com o que se busca
alcançar? Até onde é possível essa ideia se viabilizar na prática? Ou até que
ponto esta não é mais da velha artimanha dominante de contenção da rebeldia,
que tende a se manifestar entre os/as que acabam por pagar a conta dos
problemas gerados pelo modelo de sociedade ora vigente?
A
sociedade de classes que vai sendo estruturada a partir de 22 de abril de 1500
no território que depois veio a se chamar Brasil, tem num de seus momentos
iniciais a celebração da primeira missa, 4 dias depois das caravelas de Cabral
aportarem. Naquele domingo, nativos/as e lusitanos pareciam se harmonizar como
iguais. O problema, depois a história tratou de confirmar, foi que, tanto o
mestre de cerimônias, como as armas mais potentes que asseguravam o bom
andamento do encontro, pertenciam aos recém-chegados.
Nas
décadas seguintes, a catequese jesuítica, que viera junto com o primeiro
Governador Geral e passou a promover a adaptação dos povos originários às
diretrizes definidas pela Coroa Portuguesa, fracassando no objetivo de
aproximar os/as indígenas do litoral para suprir a demanda por mão-de-obra
guiada pelas fazendas açucareiras, ganhou o interior com a reformulação
estratégica de realdeamento, feita pelo sacerdote Manuel da Nóbrega.
Embora
as missões religiosas procurassem assegurar a preservação física dos/as nativos/as,
a adaptação à nova ordem, como intuito fundamental, não permitia, como alternativa,
a resistência dos povos ao projeto dominante. Por isso, uma cultura de
não-violência foi sendo propositalmente impregnada, não obstante a rebeldia de
sinceros religiosos, que, ao perceberem a trama maior por trás do espírito de
sacrifício exigido, rebelavam-se contra seus superiores e passavam a incentivar
a luta, quase sempre já às vésperas da dizimação.
Os
bandeirantes, grupos de homens que caçavam e capturavam nativos/as para serem
vendidos/as ao trabalho escravizado, chegavam a priorizar, no traçado de suas
rotas, as comunidades indígenas jesuíticas. Como revela o historiador
Capistrano de Abreu: “Por que aventurar-se entre gente boçal e rara, falando
línguas travadas e incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos,
iniciados na arte da paz, afeitos ao julgo da autoridade?”.
O
cultivo da mansidão civilizatória foi imposto aos povos oprimidos pelo
monopólio da violência dos opressores e o “diálogo” possível resultante daí foi
conformado de acordo com a maior ou menor resistência às novas regras da casa
grande-senzala.
Com
a escravização do povo africano, sabe-se que pessoas de uma mesma tribo eram
apartadas com o intuito de dificultar o diálogo entre elas e, assim, dispersar
movimentações indesejadas. A associação do açoite com o tronco perdurou
legalmente como argumento principal de governantes e proprietários de terra até
1888, mas nas periferias das grandes cidades e do campo, ainda hoje, o Estado
espanca, prende, ameaça e mata com o objetivo central – conquanto dissimule
esse fato – de impedir que mazelas comuns possam engendrar lutas comuns.
Maldade
congênita da pessoa fardada? Despreparo? Descontrole? Ou simplesmente “dever
cumprido”, como relatou recentemente um torturador na Comissão Nacional da
Verdade?
A
história demonstra de forma paciente as repetidas vezes em que bons sentimentos
estiveram a serviço de projetos de dominação. Não é a razão ou a boa vontade
que comanda a política, mas o interesse de classe, ao qual elas se encontram,
em regra, submetidas. Isso significa dizer que a argumentação só convence o que
se é convencível e a sensibilização só sensibiliza o sensibilizável nestes
marcos em que o diálogo é estruturalmente recusado.
Evidentemente
que estes limites são forçosamente ampliados quando os de baixo resolvem fazer
do diálogo entre si mesmos instrumento de união e mobilização, a ponto de
romperem o cerco da institucionalidade constituída. “É melhor morrer lutando
que morrer de fome”. A declaração da sindicalista Margarida Alves revela riscos
que caminham juntos com possibilidades e uma certeza, contida na inércia do
consentimento.
O
diálogo real pressupõe ao menos dois sujeitos capazes de emitir opiniões e de decidir,
em pé de igualdade, sobre assuntos comuns. Para tanto, as condições sociais que
os rodeiam necessitam de equiparações. O recorrente banimento legal de
organizações de esquerda, os critérios de posses para se votar ou concorrer a
eleições, as motivações e deposições golpistas, o livre financiamento
empresarial de campanhas, as manipulações ideológicas que apresentam indivíduos
autonomizados em relação ao meio social, a individualização judicial de causas
coletivas, a criminalização dos oprimidos que lutam, o “direito de greve” que
impede o direito de seguir em greve; enfim, retaliações, preventivas e repressivas,
de um sistema que tem a desigualdade como princípio e que, portanto, fecha-se
estruturalmente à universalização do diálogo.
Assim
sendo, o conflito virá à tona, inadvertidamente, sempre que oprimidos/as
reagirem à opressão. “Bem aventurados os que sofrem perseguição por causa da
justiça”. Enquanto isso, o diálogo humano, em sua plenitude, seguirá dependendo
de que o diálogo entre os/as de baixo possa ser crescente e capaz de ir
revolucionarizando as estruturas sociais ao nível da igualdade substantiva. Do
contrário, “diálogo” permanecerá como sinônimo de “mentira ou de
silêncio”.
*Thales
Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra
(MST) e da Organização Popular (OPA).
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