quarta-feira, 3 de junho de 2015

INADAPTABILIDADE E SOBREVIVÊNCIA DA ESPÉCIE



Fortaleza, 03 de junho de 2015.
Por Thales Emmanuel*

Quando Charles Darwin publicou seus estudos sobre Seleção Natural, no final da década de 1850, as forças produtivas do capital viviam sua fase de mundialização. Desde a Europa e a todo vapor, as linhas de ferro rasgavam as terras e o que quer que fosse, onde quer que encontrasse, impulsionadas pela consolidação das transformações sentidas a partir das Revoluções Industrial e Francesa.

Na esfera do trabalho, o avanço do processo de privatização da terra e dos demais meios de produção, além de enorme movimento migratório, introduziu grandes massas da população ao mundo da competição capitalista. No mesmo pacote da igualdade legal, conquistada em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o “direito natural e imprescritível à propriedade” já se notabilizava, no início da segunda metade do século 19, pelo monopólio do direito de subordinar para si todos os outros direitos. No mundo real da igualdade formal, quem tinha mais propriedade possuía mais direitos. E quem não tinha propriedade alguma, para sobreviver, cabia basicamente obedecer à lei e, na relação direta com o capital, ser o mais apto, entre muitos que precisavam ser o mais apto para sobreviver.

Se, para Darwin e sua ciência da natureza, a capacidade de se adaptar ao meio consistia no principal mecanismo preservador de qualquer espécie viva, do ponto de vista social, as coisas se mostrariam um tanto quanto diferentes para a espécie humana.

Em fins do século 19 e início do século 20, a classe trabalhadora, em países capitalistas de ponta, não só acumulava relativa experiência organizativa e de luta, como passava a conquistar o direito de disputar eleições nos marcos institucionais da política burguesa. Para a burguesia, este período foi também de largos passos dados na consolidação de seu Estado e, por conseguinte, de seu domínio. 

Na Alemanha, após um aumento consecutivo de votos recebidos em eleições parlamentares, parte da direção da classe trabalhadora confiou ser plausível superar o capitalismo por dentro dele. A aprovação contínua de reformas geraria mudanças suficientes para a construção de outra sociedade, longe não só das mazelas reconhecidamente inerentes à ordem social do capital, mas também da revolução social, defendida pelos que se mantinham convictos às teses elaboradas por Karl Marx, décadas antes.

Com essa estratégia, primeiro veio o achatamento das demandas e reivindicações da classe trabalhadora aos limites da ordem burguesa; depois, tratou-se de abrandar os métodos, substituindo o conflito pela ideia do diálogo, próprio à crença do “livre contrato social”. 

Mas, como é comum numa estrutura de sociedade em que a maioria tem o direito pétreo de apanhar calada ou, na melhor das hipóteses, apanhar se pronunciando “educadamente”, qualquer reação verdadeira, que escape aos marcos efetivos da institucionalidade dessa dominação, só pode desembocar em conflito. O conflito é, pois, pré-condição ao diálogo. 

Algumas das benditas reformas até se efetivaram, mas isso aconteceu, invariavelmente, quando o poder da classe dominante esteve ameaçado, forçando assim concessões. Ou seja, estava o “fantasma” da ruptura revolucionária a assombrar quando as mudanças por dentro da ordem se concretizaram. 

Em larga medida, no entanto, tais conquistas tiveram um caráter somente efêmero e local. O chamado “Estado de bem-estar social” não chegou a se solidificar nem em todos os países europeus e, já nos anos 1970, era perceptível seu processo de degradação.  A rearticulação das forças do capital, como acontece ainda hoje, resultou em ofensiva contra os direitos da classe trabalhadora.

Muito embora a adaptação política à ordem social do capital não tenha posto fim à luta de classes, a estratégia de colaboração reapareceu sempre que a conjuntura a demandou.  

Ao longo desses anos, o capitalismo se mostrou imelhorável para a maioria das pessoas.  O direito à propriedade reina ainda mais absoluto sobre os outros direitos. O recorde da fome contrasta com o recorde da riqueza produzida; a segregação dos empobrecidos escancara a existência de sociedades paralelas e combinadas; as guerras para alimentar mercados abusam do uso da mídia comercial, que se lambuza “em nome da democracia”; o produtivismo/consumismo do lucro rápido, princípio motor do sistema e esgotador da natureza, coloca a espécie humana diante de sérios riscos, incluindo o de extinção. 

Enquanto o protetor solar acalenta a consciência de alguns, o poder de reverter este preocupante quadro continua, como há tempos atrás, impregnado, tanto na capacidade de um projeto alternativo de mobilizar os mais diretamente impactados, como de se fazer inadaptável à ordem social do capital.

Talvez fosse isso que Marx quisesse alertar a Darwin quando tentou lhe dedicar o segundo volume de O Capital. Mas este o rejeitou.

*Thales Emmanuel é militante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e da Organização Popular (OPA).

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